Política

Educação ou má educação. Eis a questão! Fundamentar uma opinião

 

A leitura de um artigo de opinião que Henrique Raposo escreveu para o semanário Expresso sobre má educação levou-me a refletir um pouco e a esboçar a minha sobre o tema que o autor aborda. Antes, porém, devo dizer que concordo com a maior parte do que o autor escreveu, mas situemo-nos em primeiro lugar nos conceitos de educação que, neste contexto, entendo deverem ser esclarecidos.

Entende-se por educação o conjunto dos princípios, valores e normas de conduta socialmente transmitidas que estruturam a personalidade de um sujeito. Não confundamos com outro conceito de educação que é o processo educativo formal sob a forma de escolarização, isto é, de instrução em ambientes educativos especializados onde as pessoas passam alguns anos da sua vida.

Há quem pense que a má ou a boa educação terá a ver com a classe social onde cada um foi ou está a ser educado, mas a ideia de boa educação é transversal às diferentes classes sociais. Não é a pobreza ou a riqueza que determinam a boa ou a má educação em sentido não formal. Como iremos ver adiante há variáveis que influenciam o sentido da má e da boa educação.

A indisciplina pode traduzir-se em má educação. Mas o que devemos entender por indisciplina? A indisciplina depende do ponto de vista e dos contextos sob a forma em que ela se manifesta, mas de maneira geral é a transgressão de dois tipos de regras. A primeira são as morais, construídas socialmente com base em normas que regulam o universo da relação com os outros numa sociedade. O segundo tipo são as chamadas regras convencionais, geralmente aceites, definidas por um grupo restrito ou mais vasto com objetivos específicos. Entendo, assim, que ser disciplinado é comportar-se seguindo as regras sociais e morais, para alcançar algum objetivo e/ou resultado. Quando a má educação ultrapassa certos limites pende para a indisciplina.

Para os mais jovens a boa educação parece ter passado a ser algo que pertence ao passado qualquer coisa a que ainda se agarram os “cotas” - designação dada por adolescentes a pessoas mais velhas, e os “caretas” – alguém com grande apego aos padrões tradicionais.

A reboque de um alegado conflito ou desacordo geracional e de uma alegada autonomização em relação a normas convencionais começou a desenvolver-se um processo de degeneração da própria linguagem popular transformando-a numa espécie de linguajar e numa forma de falar livre ligada a uma classe e a alguns grupos urbanos.

Quando ouvimos reparos como “não sabemos o que eles andam a fazer na escola” ou “os professores é que têm a culpa do estado a que a isto chegou” está a confundir-se educação em termos de aprendizagem formal com os valores e com as condutas sociais que, de certo modo, são geralmente transmitidos em ambiente familiar ou em grupos de proximidade.

No referido artigo Henrique Raposo afirma que “hoje em dia, é quase impossível estar com as pessoas da minha infância sem ouvir a metralha do asneiredo”. E acrescenta, que “quando exijo tino, dizem-me assim: “Lá estás tu com a mania que és doutor.” A minha resposta é sempre a mesma: “Se eu dissesse um palavrão ao pé da avó, da tia ou da minha mãe, levava na hora uma estalada.” Haverá que perguntar quem não concorda com isto? Maioritariamente todos, digo eu!

Henrique Raposo terá hoje aproximadamente 41 anos, nasceu seis anos após o 25 de Abril de 1974, já no pós-revolução. Os seus pais terão vivido a maior parte da sua vida durante o regime da ditadura de Salazar e Caetano. Não admira, portanto, que a “estalada” viesse a propósito e bem aplicada. Fazia parte dos “modelos educativos” então em vigor inclusivamente no ensino formal, sobretudo na instrução primária, onde a palmatória ou a “menina de cinco olhos” estava sempre de prevenção.

Recordo-me bem dos métodos de aprendizagem desses tempos. Estávamos nos anos 50 quando os meus pais tiveram de me retirar da escola onde frequentava a instrução primária e em que o mau comportamento, a falta de trabalhos de casa e os erros cometidos, normais a qualquer aprendizagem, eram compensados pelo castigo corporal com a tal palmatória. Este tipo de violência cometido pelos professores sobre os alunos era frequente, mesmo nas escolas públicas e privadas, com a condescendência do ministério da tutela. Foi de tal forma que me retiraram daquela escola para outra cujos métodos eram o oposto. Lá consegui tirar a quarta classe e a antiga admissão ao liceu e matriculam-me a seguir no conhecido Colégio São João de Brito, na altura gerido na íntegra pela Companhia de Jesus em que os maus comportamentos e as irreverências desajustadas conduziam à abertura das palmas das mãos punidas pelo “prefeito jesuíta” em número de palmatoadas consoante a gravidade da má-criação ou ato praticado.   

Eram outros tempos, outras épocas, outros métodos pedagógicos que a Revolução de Abril veio eliminar substituindo-os por outros determinados por práticas e investigações que vieram melhorar o ensino e a aprendizagem. Como não há bela sem senão, os excessos revolucionários o “boom” da liberdade e a obsessão de tudo mudar a todo e qualquer custo, por vezes com critérios ideológicos cujos fins eram claramente calculados, contestava-se qualquer autoridade, até a dos próprios professores nas escolas, sem as prudentes cautelas. Pedia-se publicamente o desmantelamento de estruturas políticas autoritárias, defendia-se a democratização das instituições sociais, culturais e educativas.

Na educação informal os nossos valores são sustentados pelo que vivenciamos no seio familiar e, por esse motivo, os filhos começam a tornar-se parecidos com os pais na convivência diária. A tendência é que os jovens, desde criança, reproduzam o que observam e o que lhes é transmitido no dia a dia das suas vidas. O problema parece não estar na rebeldia do filho, mas sim nos pais que não souberam impor a sua autoridade enquanto educadores e manifestaram atitudes e comportamentos grosseiros e inadequados diante dos filhos.

A má educação e a indisciplina na escola e na sala de aula e fora dela é encarada por muitos investigadores como tendo origem na sociedade ou no grupo social através do qual o jovem aluno é arrastado a reproduzir comportamentos e atitudes experienciados.

As crianças copiam principalmente as atitudes e comportamentos dos pais e a própria linguagem utilizada em família ou dos grupos a que se associam.  Não se trata de um padrão absoluto, pois depende também do tipo de relação entre pais e filhos. Trata-se de uma aprendizagem social por imitação, ou vicariante, teoria desenvolvida por Albert Bandura (Teoria da Aprendizagem Social, Social Learning Theory e Social Foundations of Thought and Action). Na aprendizagem por modelação todos os fenómenos que ocorrem por meio da experiência podem ocorrer de forma vicariante, isto é, pela observação de outras pessoas e das consequências daí resultantes.

Todos os dias ouvimos pais a pedir ajuda para lidarem com a má educação e mau comportamento dos seus filhos ou educandos. Do mesmo modo professores queixam-se de que existem cada vez mais alunos indisciplinados que desafiam a autoridade do adulto no contexto escolar e familiar. O ponto de convergência está na dificuldade que as crianças e jovens têm em acatar ordens e em obedecerem a regras, ou seja, em saber estar.

O rápido salto de uma ditadura, com regras severamente impostas, para uma democracia “apressada” e com a instabilidade daí decorrente, associado aos procedimentos de um povo ansioso pela liberdade de expressão e de pensamento conduziu à rebeldia manifestada e induzida pela aquisição de mais direitos sociais e contra a exploração, extravasou e substituiu antigos valores por outros que passaram a ser mais importantes do que os deveres, o que consequentemente se refletiu na educação.

A implementação da gestão democrática nas escolas com a participação dos encarregados de educação que sobrevalorizando os seus educandos e exercendo pressões sobre os diversos poderes, condicionou, e pôs em causa, a autoridade dos órgãos diretivos das escolas e dos professores dentro e fora da sala de aula.  Tudo isto gerou abusos e atropelos devido ao protecionismo complacente dos ministérios tutelados pelos governos dos partidos frequentadores do poder cujas políticas educativas têm mais de ideológico-partidário do que de pedagógicas.

Os professores encontram-se assim no olho do furacão passando mais tempo a manter a disciplina do que a lecionar o conteúdo dos programas no seu exercício. Encontram-se por um lado na condição de educadores e, por outro, de agentes de ensino/aprendizagem.

Um dos grandes desafios dos educadores e dos professores na atualidade é o de resolver o problema da indisciplina associada à má educação dos alunos no espaço escolar e dentro da sala de aula, e fora dela. Esta situação não é um problema exclusivo das escolas públicas, é também das privadas e ultrapassa as fronteiras das escolas portuguesas.

A quem compete uma e outra? Uma deveria essencialmente competir à família, a outra à escola que pode e deve complementar a primeira que é indispensável. As famílias parecem ter abdicado da educação dos seus filhos ou educandos.

No dizer de Henrique Raposo “Os pobres estão a ficar cada vez mais pobres e menos instruídos porque criou-se a ideia perversa de que a boa educação é coisa de betinhos.” Parece-me que fazer depender a pobreza e o seu aumento da falta de boa educação parece-me ser arrevesado.

A má educação não está desassociada da indisciplina nas escolas que não podem ser atribuídas apenas aos jovens enquanto pessoas. A formação do sujeito é também fruto do meio / sociedade de onde ele procede. Desde a fase de tenra idade a pessoa é influenciada pela sociedade e pelo ambiente, cabendo a maior parte desta influência à responsabilidade parental, visto que os pais são os principais responsáveis ​​pelo cuidar dos seus filhos ou educandos. A estrutura e as organizações familiares contemporâneas são um dos fatores que interfere no comportamento dos educandos na escola, e fora dela, o que está a refletir-se no modo de encarar a educação não formal já que muitos pais tentam transferir para a escola a tarefa e a responsabilidade de educar os seus filhos.

Quando uma criança não é ensinada a mostrar boa educação e a ser disciplinada, a possibilidade de essa criança vir a ser mal-educada é muito alta, assim como é muito fácil para uma criança copiar as atitudes dos pais ou responsáveis educativos, especialmente quando essas atitudes são contra as normas e valores da sociedade.

Quando desde tenra idade a convivência se processa em ambientes sem limites, regras e princípios e onde tudo é permitido, transformar-se-ão em sujeitos que não obedecerão a regras, não terão limites em casa, na escola ou em qualquer grupo em que conviva. Passarão a acreditar que todas as suas vontades deverão serão atendidas, tornando-se assim em alguém incapaz de conviver em sociedade. Este tipo de atitude dificultará a sua adaptação e à aceitação dentro de grupos sociais.

Os alunos que não aceitam e nem compreendem a importância e a necessidade das regras sociais, não conseguirão adaptar-se às regras e normas impostas pela escola, apresentando atitudes indisciplinadas e algumas vezes afastando-se das instituições educacionais, pois para esses educandos é mais fácil viver sem algo que restrinja suas ações.

 Algumas das causas da má educação e de indisciplina nas instituições escolares são: perda de respeito pelos professores; falta de ideais; prática educacional defeituosa no ambiente familiar; desvalorização progressiva do valor e importância da escola pelos pais; crises económicas e financeiras gerais ou familiares e consequente pobreza. Estes São os fatores externos a interferir nos atos de indisciplina na escola.

Se efetuarmos, portanto,  uma pesquisa rigorosa sobre o tema não restarão dúvidas que a má educação que leva à indisciplina dos educandos é um problema social, onde as atitudes dos alunos estão diretamente ligadas às influências do meio em que vivem. Acresce o facto de que o mesmo aluno que é disciplinado com um professor pode ser indisciplinado com outro tornando assim a questão muito mais complexa.

A má educação e a indisciplina traduzem-se numa perda do respeito ao nível familiar e pelos professores que não se verificava no passado com a mesma intensidade onde sistemas mais ou menos totalitários dominavam e onde atualmente ainda dominam em alguns países.

Durante a revolução do 25 de Abril alguns movimentos de partidos e políticos influenciaram com algum exagero o sentimento dos alunos encorajando-os a participar ativamente da revolução. Do meu ponto de vista os professores não puderam ter uma participação idêntica devido às perturbações então vividas nas escolas, e em certa medida como resultado perderam a consideração e o respeito dos alunos.

Uma das causas poderá ter sido a “deslocação do poder do Ministério da Educação para as escolas, dos diretores das escolas e do corpo docente tradicional para os professores progressistas e para o corpo estudantil”[1]. Para Stoer, sociólogo português com trabalhos na área da Sociologia da Educação, a “ocupação” das escolas não foi operada por iniciativa do poder político ou da administração central, na base de qualquer projeto consistente de descentralização. Não se tratou, sequer, de uma delegação de poderes, e menos ainda de uma devolução, mesmo que transitória. Tratou-se, isso sim, de uma deslocação de facto, de uma “imposição da periferia e da base do sistema” que se apropriou progressivamente de poderes e ensaiada na prática, através de processos de democracia direta. Aprendendo a decidir, decidindo, e através da decisão alcançando a autonomia. Do meu ponto de vista talvez tenha sido o que poderá ter levado os alunos ao desrespeito pelos professores numa lógica de que todos estavam no mesmo barco e somos “todos iguais em direitos”.

O que ocorreu, em termos de implantação da gestão democrática das escolas, foi uma decisão, que exerceu uma autonomia não concedida, mas antes conquistada pela ação dita revolucionária dos movimentos da época.

Algumas opiniões para que “um dos grandes feitos do 25 de Abril foi precisamente o de permitir que cada macaco não esteja no seu galho. A liberdade deu lugar à libertinagem. O professor passou a ser o mau da fita” para o que todos os partidos contribuíram e continuam a contribuir para isso.

Mas a indisciplina começa quando a falta de educação e ausência de princípios acabam. A importância da participação ativa da família com a escola tem sido alvo de diversos estudos, tendo em conta fatores como o comportamento dos alunos em sala de aula e os problemas de adaptação. De uma maneira geral o que se verifica é que na família não se impõem regras e limites aos filhos, e até porque ela própria muitas vezes não as têm ou não as praticam.

O que está em discussão é saber se a má educação e a indisciplina a ela associada refletem a importância que a sociedade lhes atribui. Em primeiro lugar, a disciplinas na escola está expressa nas várias perspetivas e posições mais ou menos instaladas em torno de ideologias ou escalas de valores que são conflituantes.

Como a maior ênfase é dada aos exames os professores ensinam apenas para preparar os alunos para aquelas provas colocando de lado os ideais e valores da boa educação. A disciplina e a boa educação são valores sociais muito importantes, porém, há crianças e jovens que convivem num meio ou grupo onde essas regras não existem ou não são consideradas.

As deficiências de nosso atual sistema educacional proveniente dos primeiros 20 a 30 anos afetaram todo o sistema e os professores estiveram, e ainda estão, expostos a críticas, por vezes infundadas, e a interferências externas ao espaço pedagógico da escola o que afetou o seu status ficando sujeitos a ter contacto mais direto, e quase permanente, com a sociedade, sobretudo pais, contestação de alunos e ainda de outros agentes que não fazem parte do domínio pedagógico. As pessoas passaram a respeitar menos esta profissão. Os próprios professores não raras vezes devido aos sindicatos que apenas se centram e os movimentam em torno de reivindicações principalmente no que se refere as remunerações salariais, acabando por ignorar imperativos inerentes exercício da sua função.

No período da revolução solicitava-se pela intervenção de algumas forças políticas a não seguir leis e regras que consideravam serem do passado, da ditadura consideradas impróprias, tornando-se difícil diferenciar entre as leis certas e as erradas. Quando os alunos desenvolvem o hábito de violar algumas regras básicas da boa convivência e educação também desenvolvem o hábito de violar todos os tipos de leis. O principal motivo da indisciplina entre as crianças e jovens reside neste facto. Ao longo dos anos buscam-se causas, como se fosse uma doença para a qual, ao ser diagnosticada será encontrada a cura, mas o tratamento quando diagnosticada a doença demorará anos a prevalecer até ser vencida.

Tratando da dimensão ideológica do currículo para a teoria curricular o conhecimento presente no currículo serve a legitimação e o desenvolvimento da ordem social e democrática enquanto uma construção social. Dessa forma, a linguagem, metodologias, conteúdos e os códigos culturais modelam a perceção e o modo de compreensão dos alunos, sendo marcado pelas relações de poder decorrentes de opções ideológicas e de posições hegemónicas de diferentes grupos de interesses.[2]

Henrique Raposo com algum assomo sectário aponta o dedo a um dos alvos que contribuiu para os desmandos da má educação atual que, segundo ele, foram os “gurus pós-modernos” como Pierre Bourdieu e outros que “impuseram a ideia errada de que a “boa educação era uma prisão burguesa que aprisionava o povo; criou-se assim a perceção de que o decoro não é um valor universal, mas sim um tique dos ricos”.

Henrique Raposo conforme depreendo da leitura dos artigos que acompanho, sempre que posso, será tendencialmente um neoliberal ou um liberal o que poderá justificar algum sectarismo ideológico ao referir-se a Bourdieu, sociólogo e filósofo francês cujo pensamento se baseia em fontes que se estendem ao marxismo e ao diálogo intelectual com contemporâneos, como Althusser, Habermas e Foucault também eles de influência marxista.

O pensamento de Bourdieu leva, por vezes, por aceitações por alguns e a outros a rejeições precipitadas do seu pensamento filosófico e sociológico. As avaliações levadas pela emoção conduzidas por sectarismos ideológicos de esquerda, ou de direita, não contribuem para uma compreensão da obra no âmbito da sociologia da educação que nada têm a ver com o que Henrique Raposo afirma, generalizando: “Criou-se assim a perceção de que o decoro não é um valor universal, mas sim um tique dos ricos.” O pensamento filosófico marxista passou a ser um preconceito de setores da direita e de alguma esquerda moderada.

Henrique Raposo ao atribuir a culpa a Bourdieu pelo conceito de “boa educação” que é uma clausura/prisão devida à burguesia parece-me ser, de certo modo, deturpada quanto ao objetivo original do seu autor. Tomou o particular pelo geral, descuidando o contexto em que tal afirmação foi expressa, isto é, a boa educação é afinal uma questão “chunga” inventada pela burguesia como diz Raposo.

O que Bourdieu refere diz respeito à educação formal que é facultada pelos currículos escolares e projetos escolares que Bourdieu, de facto numa perspetiva marxista de domínio classista, afirma ser um ensino dito burguês numa perspetiva de formação tendencialmente economicista para a competição, que é atribuída à educação.

Henrique Raposo sabe, com certeza e muito bem, que toda a política educacional contém intencionalidade, valores, ideias e orientações, que se estendem pelas escolas atuando decisivamente na prática pedagógica, e, consequentemente, à construção de perfis dos cidadãos desejado pelo Estado. Todas as políticas educativas são desenhadas ideologicamente, vimos isso em todos os regimes, dos democráticos aos totalitários sejam de que sinal forem.

De facto, a educação sempre serviu para responder aos interesses das classes dominantes, (isto é, da sociedade organizada em estratos socioeconómicos, profissionais e religiosos), e   do   mercado, e, nesse   sentido, as   camadas   populares, cujos filhos frequentam o sistema de educação pública, foram   sempre desfavorecidas em comparação com o ensino privado, embora a má educação seja mais frequente no primeiro. Esta não deve ser encarada como sinónimo de interpretação de perspetiva marxista, ela deve interpretar-se consoante as ideologias dos poderes que em cada altura controlam os Estados.




Se nos situarmos em dois momentos marcantes da nossa história recente deparamo-nos com diferenças entre dois modelos educativos e curriculares: um ao tempo do Estado Novo e outro no pós-revolução do 25 de abril, podendo este ser dividido em dois ou três momentos.

O Estado Novo recorria às escolas primárias para comunicar com as populações e para difundir a imagem e a “herança da Nação Portuguesa”. A escola era responsável pelo desenvolvimento de ações conducentes à criação de vínculos entre as crianças e a Nação[3]. Para tal, recorria a referenciais simbólicos como a bandeira e o hino nacional, por forma a promover a construção da identidade nacional. Basta darmos uma olhadela aos manuais de leitura da instrução primária para o constatarmos.

 Nas escolas do Estado Novo, afixados nas salas de aula a fotografia de Salazar estava sempre presente ao lado de um crucifixo. Eram fábricas de cidadãos nacionais obedientes e bem-educados e “Nos bancos das escolas, aprenderam os rudimentos de geografia e de história necessários para adquirir algo como uma consciência nacional. A identificação de certos símbolos – hino, bandeira, instituições, figuras, monumentos, etc. – é outro aspeto importante desse processo de formação cívica que só na época contemporânea mereceu uma atenção sistemática por parte dos responsáveis políticos.” [4]

A escola primária era um dos principais agentes ideológicos do regime que utilizava os currículos escolares para mentalização ideológica. Era uma imagem distorcida da realidade, marcada pela existência de um regimento autoritário e por um líder a quem se exigia total obediência. O modelo de comportamento do chefe era o exemplo e devia ser assimilado e seguido pelo povo, porque só assim se poderiam formar novas gerações educadas no espírito do amor e da defesa da Pátria Salazar era tomando como o exemplo do português modesto e trabalhador, pronto a sacrificar-se pela Pátria.

O aparelho ideológico do Estado Novo, consciente desta questão, formulará e difundirá, nomeadamente através da criação do Secretariado de Propaganda Nacional em 1933, um programa de política do espírito.[5]

Apesar de na chamada primavera marcelista algumas alterações e revisões terem sido submetidas a modificações nos currículos educativos, só após a queda do regime se procedeu a alterações profundas que se executaram desta vez numa orientação ideológica de esquerda de tendência pró-marxista que se prolongou por alguns anos.   

Portanto, voltando a Bourdieu, e em síntese, o significado de a “boa educação” ser uma “prisão burguesa” este autor referia-se, no ano em que o escreveu, às políticas e orientações educativas associadas à ideologia dominante sinalizadas pelos Estados através dos currículos educativos e à orientação educativa das escolas que as aplicavam.

No início deste texto referi dois conceitos de educação, a instrucional e a formativa: a que é fornecida pelas escolas em função de cada projeto educativo o outro que se refere ao conjunto dos princípios, valores e normas de conduta socialmente transmitidas em que a família está incluída. Parece-me ser ao âmbito da educação formal que Bourdieu refere. Este caracteriza-se por ser estruturada e desenvolvida no ambiente de instituições como escolas e universidades onde o aluno deve seguir um programa pré-determinado e, mais importante ainda é idêntico ao dos outros alunos que frequentam a mesma instituição.

A educação não formal processa-se fora da esfera escolar e é veiculada através de meios de comunicação e outras instituições desenvolvendo-se, assim, de acordo com os desejos do indivíduo, ocorrendo de forma espontânea na vida do dia-a-dia através de conversas e vivências com familiares, amigos, colegas e interlocutores ocasionais.

De facto, para Bourdieu, a educação formal perde o papel que ao longo do tempo lhe é atribuído pela instância transformadora e democratizadora das sociedades e passa a ser vista como uma das principais instituições por meio da qual se mantêm e se legitimam os privilégios sociais em sentido lato. Trata-se, portanto, de uma inversão total de perspetiva encarada por Henrique Raposo. Bourdieu oferece apenas um novo quadro teórico para a análise da educação, dentro do qual os dados estatísticos acumulados a partir dos anos 50 e a crise de confiança no sistema de ensino vivenciada nos anos 60 ganharam uma nova interpretação.

Termino com uma citação de Henrique Raposo: “Quem não percebe isto não percebe nada. Não percebe, por exemplo, porque é que os políticos abertamente mal-educados como Trump e Ventura recolhem os votos do tal povo deseducado por três décadas de pós-modernismo à Bourdieu e à Jon Stewart. Tão modernos que eles são: fazem rir a malta porque dizem fuck três vezes num minuto. Tão sofisticados, meu Deus!”.

Concordo, mas, por favor, não se culpe Bourdie. Quanto a Jon Stuart não sei, só conheço Stuart Mill e Stuart Hall[6] e, mesmo assim, este último, mal.

 



[1] (Soer, Stephen R. ; 1985 - A Revolução de Abril e o sindicalismo dos professores em Portugal. Cadernos de Ciências Sociais, 3, p. 61-83 e p.67

[2] APPLE, Michael W. Ideologia e currículo. Porto Alegre, ARTMED, 2006. p. 288

[3]Consultar Jorge Ramos do Ó, 1999, Os anos de Ferro, o dispositivo cultural durante a “Política do Espírito” 1933-1949; pp. 55-59, citado em A Escola Portuguesa ao serviço do Estado Novo: as Lições de História de Portugal do Boletim do Ensino Primário Oficial e o Projeto Ideológico do Salazarismo; Maria Paula Pereira, U. Aberta; Revista Da Investigação às Práticas: Estudos de Natureza Educacional (INVEP), publicação do Centro Interdisciplinar de Estudos Educacionais (CIED) da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Lisboa.

[4] João, M. I.; 2001. Estado, Nação e Região; Arquipélago-Revista da Universidade dos Açores,5, 689-702. Maria Isabel João, Professora da Universidade Aberta.

[5] Idem

[6] Professor de sociologia jamaicano que viveu no Reino Unido, um dos defensores do multiculturalismo.


Novamente o fecho das escolas e o ensino a distância: Presença social um elemento importante para a aprendizagem?

 

Com o fecho das escolas volta a estar novamente em questão o ensino a distância e o presencial. Pareceu-me oportuno recordar um texto que escrevi, há relativamente pouco tempo, e que podem ler aqui ou aqui

 

Conferências de imprensa e as comunicações de um mestre-escola

 


No semanário Expresso da passada semana João Vieira Pereira escreve no ponto 2 do artigo de opinião com o título de “Patinho feio” o que eu e muitos já pensámos sobre o que está a acontecer em janeiro no que se refere covid-19. Pelo que conheço das suas opiniões publicadas não me identifico ideológica e politicamente com Vieira Pereira.

Como não sou sectário aceito, sem deixar de ser crítico, as ideias e opiniões que sejam contributos para tudo quanto se achar necessário ser melhorado.

Quando comparo o primeiro-ministro António Costa com os seus congéneres e presidentes da Europa durante as conferências de imprensa para comunicar decisões que se relacionem com estados de emergência e confinamentos, parece-me estar a escutar um mestre-escola que, perante os seus alunos inquiridores, se coloca numa atitude de tudo justificar ao pormenor, em vez da assertividade e segurança que seriam de esperar ao anunciar medidas exigidas. António Costa parece estar a pedir desculpa pelas decisões que necessariamente devem ser tomadas.

A falta de rápida capacidade de resposta, as intermitências das medidas que devem ou não ser tomadas e a perceção dada à população de um certo alívio como o foi mostrado durante a época natalícia com o slogan “Vamos salvar o Natal!” tiverem consequências.

Também não sabemos se na altura fosse escolhida uma opção mais severa, observando o que os especialistas avisavam, não estariam agora a clamar e a culpabilizar os mesmos pela economia perdida durante a época natalícia.

É neste sentido que o ponto 2 do artigo de João Vieira Pereira, com o qual concordo, vem a propósito e que passo a citar:

“2 Reina a hipocrisia entre quem está surpreendido com os atuais números da pandemia. Os técnicos já tinham feito as contas, os especialistas já haviam avisado e os jornais já o tinham escrito: um Natal sem confinamento significava que “o mês de janeiro pode chegar ao fim com um acréscimo de 800 a 1500 mortes”. Não lhes ligaram. Era importante salvar o Natal. Feito! Mas com um custo inaceitável. A responsabilidade política é enorme, e essa só tem um rosto, o de António Costa. Não há outra forma de o dizer. Na Europa, enquanto muitos apertavam, nós facilitámos. A opção foi política, não foi técnica.

É provável que cheguemos ao fim deste mês com quase 3 mil mortos provocados pela pandemia, sendo que estas vítimas já estão neste momento infetadas. O crescimento dos números deixa antever um inverno negro. O vírus não usa relógio ou calendário. Não sabe se é fim de semana e se são 13h para começar a infetar. Mas sabemos que gosta de espaços fechados, de aglomerados, de reuniões familiares prolongadas, de almoços e jantares de amigos. Sabemos, mas não agimos. Preferimos apelar à responsabilidade de cada um. A tempestade foi perfeita com a liberdade do Natal, os aglomerados provocados nos espaços comerciais pelas restrições e a falsa segurança de que a vacina está aí para nos salvar. Agora vamos correr atrás do prejuízo e adotar medidas restritivas que só vão ter efeitos em fevereiro. Sim, porque janeiro já está perdido. E tudo pode ser ainda superior com os novos adiamentos de atos médicos não-covid, que se podem generalizar à medida que os hospitais atingem o seu limite. Enquanto isso, as vítimas silenciosas desta pandemia crescem todos os dias. Alguns só terão essa noção meses, anos mais tarde.”

In Semanário Expresso de 8/1/2021

Presença social na aprendizagem online - 1. Confinamento e a aprendizagem online a distância

 


Este tempo de covid-19 obrigou a alterações profundas nos métodos e processos de trabalhar, de ensinar e de aprender. Teletrabalho, telescola, aprendizagem online, ensino a distância e outros são conceitos que passaram a fazer parte da gíria dos mais diversos setores de atividade. Empresas e escolas depararam-se com problemas consequentes duma resolução rápida e não prevista da alteração de métodos de trabalho e de relações sociais.

O caso da educação parece ser o mais sensível e que levantou mais duvidas. Muitos consideram, e bem, que a escola são aulas presenciais e onde a socialização é enriquecida com a interação com pares e professores. Se, por um lado, esta atitude é a mais aceite em termos pedagógicos, sobretudo no que se refere a crianças que se encontram nos primeiros anos de aprendizagem, diria até ao 9º ano, em alguns casos até ao 12º., por outro lado, tem-se verificado um sentimento negativo que grande parte dos encarregados de educação, professores e alunos têm pelo ensino/aprendizagem online e a distância. O que se colocou com mais evidência foi a questão das aulas presenciais como fator imprescindível para as aprendizagens. É o fator negativo da falta de presença, ou melhor da presença social durante a aprendizagem, tema que tratarei mais adiante.

A internet fornece-nos milhares de pontos de vista, opiniões e artigos sobre as vantagens e desvantagens do ensino online, a maior parte deles escritos por quem nunca frequentou o ensino a distância e nem sequer viveu nem sabe, na prática, o que é nem como funciona essa modalidade de ensino/aprendizagem. 

Os professores que utilizem e dominem as estratégias do ensino online serão cada vez mais solicitados, quando necessário, para substituir aulas presenciais, enriquecer as aprendizagens dos seus alunos, participar num módulo ou parte de um curso da sua área de especialidade quando se encontrem distantes do local físico onde dão aulas.

Num futuro mais ou menos próximo deverão ser-lhes disponibilizadas para as suas aulas tecnologias como vídeos, apresentações e câmaras para visualizar e interagir com os alunos através videochats. Os professores irão que ter flexibilidade para se adaptarem a situações muito diferenciadas e terem sensibilidade para escolher as melhores soluções possíveis para cada momento. Apesar de algumas melhorias nos currículos dos cursos das licenciaturas de professores incluindo unidades curriculares de utilização de tecnologias o que acontece é que as licenciaturas do nosso sistema de ensino e de formação de professores estão muito direcionadas para o ensino presencial, não estando a proporcionar as necessárias competências para o ensino online numa situação de emergência como a que se viveu ainda há pouco tempo. A consequências foram as falhas e erros apontados e a rejeição por muitos da modalidade de ensino online a distância aquando do confinamento total que obrigou ao fecho das escolas e à aplicação desta modalidade em tempo record para responder à situação imediata.

A educação não se faz apenas no sentido do ensino, mas sim na simultaneidade ensino/aprendizagem para que a aprendizagem seja estimulada. Muitos professores e encarregados de educação têm uma perceção de práticas de ensino que são representações dum passado ainda recente em que um aluno deve ser um poço de receção numa ótica do magister dixit.  Preocupam-se com o tempo que os seus alunos e educandos estão frente a um computador aplicados ao estudo e à aprendizagem, mas não se preocupam com as horas que os seus educandos estão online em “outras espécies de aprendizagens” captando e assimilando subconscientemente informação que lhes vai corrompendo a personalidade, a noção de verdade e de rigor científico.

Para muitos alunos, sobretudo os adolescentes, a verdade, deixou de ser a que professores e encarregados de educação lhes conferem, passou a ser a das redes sociais que frequentam, as pessoas e “amigos” com quem interagem horas a fio nas redes e por telemóvel.

Não é raro que muitos encarregados de educação, a maior parte das vezes os pais, face a questões que os seus educandos lhes coloquem recebam respostas como “vai procurar na net” ou “vai ver ao Google”. Causa-lhes impressão a presença dos seus filhos em casa porque, muitas vezes têm que os “aturar” presencialmente, o que é para eles um incómodo, porque pensam que, para isso, é que serve a escola. Claro que os pais têm os seus trabalhos e não podem tomar contas dos filhos, mas isso leva-nos a outros problemas que não cabem neste espaço. Para muitos pais a escola deve ser o local onde deixam as crianças e os jovens adolescentes em idade escolar e onde os vão recolher quanto mais tarde melhor. Há justificações profissionais dos pais, é certo, mas isso é outra conversa.

Há, ainda, uma evidência, não é de somenos importância, que é a impossibilidade imediata de milhares de alunos não possuírem tecnologias, devido a problemas financeiros e económicos dos seus encarregados de educação que não têm a capacidade de investir em tecnologias compatíveis o que gera situações de graves desigualdades sociais comparativamente a outras que têm ao seu dispor mais do que o necessário.

Devido ao confinamento começaram a proliferar na comunicação social artigos sobre as consequências do isolamento e da falta de interações social vindos de psicólogos, pediatras, psiquiatras e até de quem, até ao momento, nunca se tenha interessado e preocupado com isso.  Tiveram a oportunidade para debater o que afeta psicologicamente crianças, adolescentes e adultos devido ao teletrabalho e ao ensino a distância online. Não nego a boa intensão e a cientificidade de todos esses especialistas, mas o que acontece é haver uma intenção destrutiva e oposicionista de cariz político extremamente conservador contra quanto saia fora das suas representações, desculpem-me estar a proferir juízos de intenção, mas é o que me fica da leitura de alguns desses artigos.

As críticas feitas ao ambiente online como sendo um espaço inadequado para ensinar e aprender vêm de encarregados de educação e de muitos professores, cansados e em stress atingidos pela exaustão e por vezes pelo burnout, e também da parte de muitos alunos que, por estarem dependentes das aulas presenciais, ficam por isso dececionados com essas novas estratégias de ensino/aprendizagem. Dizem alguns sobre a experiência que viveram, que sentem a nostalgia do espaço seguro da sala de aula, que garante a aprendizagem plena, enquanto que o ensino online é um espaço precário, incompleto, provisório.

A desmotivação dos alunos no ensino presencial também tem sido objeto de discussão. Será também difícil manter a motivação no espaço virtual de salas de aula se os alunos não forem envolvidos afetivamente nos processos de participação que lhes inspire interesse e confiança. Os professores que nas suas disciplinas insistam e se limitem à transmissão de informação e de conteúdos, mesmo que bem produzidos, e não ajudem e motivem os alunos a criar o seu próprio conhecimento, incorrem no risco de os desmotivar fazendo com que a aprendizagem não passe da teoria esquecendo o binómio teoria/prática. Há, contudo, uma vantagem do ensino presencial desde que os alunos estejam atentos e motivados: obtém-se rapidamente o retorno na resolução dos problemas que acontece com a procura do diálogo e de novas estratégias pedagógicas. No online os alunos estão à distância e apenas acessíveis por e-mail que é um meio frio, ou então pelo smartphone, se não houver acesso a videoconferência a dispersão pode ser ainda maior.

O problema não está na aprendizagem através de plataformas online. O que está a revelar a experiência neste período de pandemia é que a maior parte dos professores das escolas, mergulhados que têm estado na atividade presencial, ensina através do online de forma inadequada, muito baseada nos conteúdos programáticos dependentes do professor, deixando para segundo plano o envolvimento, a participação e a criatividade dos alunos. Dar aulas não presenciais é muito mais trabalhosa que aumenta quando se pretende manter uma interação produtiva com os alunos.

O problema não está no online, está na falta de autonomia que, no ensino presencial, não foi estimulada na formação dos alunos, está na insuficiência no domínio das competências básicas (saber pesquisar, analisar, avaliar...) e está também na gestão paternalística das aulas e da forma de ensinar: tudo é dado pronto, como ementa fechada, prato feito, com pouca autonomia, participação e envolvimento dos alunos.

Mário Santos, Investigador em Inteligência Emocional e Professor na Universidade da Madeira escreveu no jornal Económico que “Temos de ter a noção de que somos seres sociais e de que necessitamos de viver em sociedade para nos encontrarmos em perfeito equilíbrio, motor, cognitivo e emocional e por isso temo que a invasão das novas tecnologias acelerada com o aparecimento do novo coronavírus seja um motor de destruição social e que nos pode destruir como sociedade e ficarmos cada vez mais robotizados nas nossas atividades, relações, expressões e colaboração interpessoal.”

Perfilho em parte este ponto de vista que devido ao atual contexto condicionado pela covid-19 faz todo o sentido, mas isso não pode ser tomado como uma fatalidade. A sociedade vai-se adaptando à evolução. Quando até ao final dos anos 70 dominavam os grandes computadores e quando nos finais da década de 70 apareceram os primeiros computadores pessoais a penetrar em ambiente de trabalho vários pensamentos de receio quanto ao futuro que as máquinas trariam à sociedade seguiam uma linha de preocupação acerca da vida em sociedade e das relações de trabalho. Entretanto, muita coisa mudou e adaptou sem alterações catastróficas. Durante a primeira década do século XXI com a tecnologia das redes sociais verificou-se que as interações sociais se tornaram mais ativas, não apenas em rede, mas também ao nível presencial que as mesmas estimularam através da potenciação de encontros.

No que se refere às faixas etária mais baixas ao nível do pré-escolar a opção por um dos elementos da dicotomia educação em ambiente presencial/educação em ambiente online poderá ser mais problemática. Noutros casos o problema parece ser menos da tecnologia utilizada e mais das metodologias pedagógico-didáticas utilizadas porque não foram devidamente testadas para grupos de grande espetro.

As tecnologias digitais associadas às telecomunicações para aprendizagem sempre com a interação como o professor podem potencializar e estruturar novas sociabilidades e, por consequência, novas aprendizagens. As que existem são apenas circunstanciais e limitadas apenas a algumas escolas onde parece estar a ser praticado como forma complementar ao ensino presencial.

Educação online pode definir-se como um conjunto de ações de ensino-aprendizagem desenvolvidos por meios como a internet onde podem coexistir a videoconferência e teleconferência e abrange cursos totalmente virtuais e exclusivamente online sem qualquer presença física e  cursos semi-presenciais (blended learning ou b-learning) em que parte é presencial com atividades complementares fora da sala de aula com apoio da internet.

A educação online utiliza-se em situações onde o presencial não possa ser opção por motivos, por exemplo, em situação de pandemia e confinamento como aquele que vivemos, numa situação em que se deva atingir um grande número de alunos em pouco tempo, ou então por opção quando a vida profissional não deixa espaço para frequentar aulas presenciais.

No ensino/aprendizagem em rede ou a distância todos os participantes são potencialmente emissores, recetores e produtores de informações, quer sobre as matérias programáticas quer sobre problemas conexos, por vezes até pessoais, e também sobre aspetos cognitivos e dificuldades pessoais. Nestas circunstâncias encontramo-nos num contexto de ecologia da informação por estarem incluídas escolhas de caminhos e participações num denso conjunto de inter-relações entre elementos participantes, práticas, valores, hábitos, crenças e tecnologias. Na ecologia da informação o foco não é a tecnologia em si, mas sim a atividade realizada por meio da tecnologia.   Há uma interdependência entre recursos tecnológicos e atividades, cada um ajustando-se e adaptando-se em relação ao outro.

A metáfora ecológica foi utilizada por (Nardi e Vicki, Information ecologies, MIT Press, 1999) que sugere várias propriedades-chave de muitos ambientes nos quais a tecnologia é usada. Uma ecologia da informação é um sistema complexo de partes e relações. Como qualquer sistema ecológico, exibe diversidade, interação e experimenta uma evolução contínua.

As escolas são ambientes intrinsecamente ricos em informações com múltiplos fluxos convergentes e sobrepostos de informações de entrada e saída. As informações são representadas num grande número de formatos, incluindo padrões de aprendizagem, currículos, planos de aula, listas de alunos, planos educacionais individuais, políticas e procedimentos, livros didáticos, recursos online e programações de aulas todos eles relacionados entre si.

A utilização das tecnologias da informação no ensino a distância online insere-se num contexto ecológico da informação o que significa atuar num ambiente virtual, dialogar, trocar informações e experiências, tomar decisões e produzir conhecimento. Nesta perspetiva cada um que se envolva encontra-se em ligação com todos os participantes e recursos existentes que fazem parte de uma rede de interdependência constituindo uma unidade dinâmica que se desenvolve de forma relacional e pluralista.

A potencialidade da ecologia de informação em contexto educativo reside no papel ativo dos seus participantes professores e alunos que têm acesso a informações e recursos para desenvolver atividades colaborativas, dialogar com o outro e estabelecer inter-relações.  Os intervenientes tanto podem inserir novas informações como buscar as informações que lhes são adequadas. Por outro lado, cada aluno pode estar em ligação interagindo com outros sobre as temáticas que estão a ser trabalhadas. Exemplo pode ser tudo o que o professor envia ou coloca numa plataforma e os exercícios e trabalhos que lá são colocados por cada um dos alunos para avaliação pelo professor cujo resultado receberá pelo mesmo meio. 

Muito se tem falado da socialização, cuja importância é inegável, assim como da necessidade que as pessoas têm de comunicar, sejam elas crianças, adolescentes ou adultos. Em situações de aprendizagem e aquisição de conhecimento Piaget investigou que o conhecimento é construído nas interações que se geram entre o sujeito e o meio que são dependentes um do outro por assimilação que é a incorporação de elementos do objeto conhecido às estruturas existentes e por acomodação que é a transformação dos elementos assimilados modificando os seus (os do sujeito) esquemas prévios ou criando novos esquemas ou estruturas de pensamento gerando novos significados. Penso que esta tese construtivista do conhecimento não retira validade à aprendizagem online desde que interativa, antes poderá reforçar a presencial.

Os professores pela dificuldade do novo processo que lhes foi imposta pelos condicionamentos gerados pelas circunstâncias que a pandemia lhes impôs não conseguiram encontrar num curto espaço de tempo uma metodologia adequada para os seus cursos online. A maior parte, senão todos, reproduziram condições de sala de aula convencional transferindo para o virtual as conceções pedagógicas das aulas presenciais. Colocam-se no papel de professores centralizadores que, a partir textos e atividades que organizam a matéria, reforçam o papel principal do professor.

A aprendizagem online leve colocar-se numa posição mais participativa do processo educacional estimulando a pesquisa e a interação entre pequenos grupos. Em muitas escolas já foram criadas plataformas de aprendizagem que facilitam a colocação de textos, a organização de atividades em ambiente virtual para professores e alunos sem a necessidade de muitos conhecimentos prévios de tecnologias mais sofisticadas. Estas plataformas possibilitam a combinação entre aulas de vídeo, teleconferência pela internet e atividades individuais ou em pequenos grupos antes e depois das aulas sendo parte online e parte offline.

Na fase inicial de autoaprendizagem mesmo que orientada pelo professor pode existir o perigo de dispersão em situação de procura informação ao fazer navegação aleatória executada sem a consciência do que se pesquisa e sem uma tomada de decisão sobre os caminhos a seguir derivados da arquitetura de hipertexto dos motores de busca. A navegação para selecionar informações significativas de acordo com o objetivo pretendido necessita de treino.

A aprendizagem em situação presencial tem vantagens e é imprescindível porque a nossa cultura educacional assim o impõe por motivos que se prendem com a socialização das crianças em situação escolar, mas que exigem, cada vez mais, a familiaridade com as tecnologias como fator de sobrevivência no futuro. Vê-se atualmente o que se passa devido à pandemia com as dificuldades que muitos trabalhadores sentem para se adaptarem ao teletrabalho.

 A criança desenvolve-se em contexto social, são as interações e as relações com as pessoas e com os sistemas sociais que têm um papel crucial para suas aquisições e para a construção de funções psicológicas cada vez mais sofisticadas. O mundo em que vivemos é um mundo de pessoas, coisas, lugares, ações que têm significados construídos historicamente e cuja apropriação se dá no contato social. Neste sentido, pode dizer-se que é aí que o indivíduo se constrói.

Segundo Hohmann e Weikart “As crianças procuram de forma ativa os seus pares, construindo brincadeiras lado a lado, falando (ou vocalizando), observando e interagindo com os mesmos de forma lúdica, sendo que todas estas interações vão ficando mais complexas à medida que as crianças se vão desenvolvendo cognitivamente”. Podemos acrescentar também os adultos com quem interage. Consultar (Hohmann e Weikart. Educar a criança. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian 2011).

O ensino/aprendizagem online mediada pela internet pressupõe que são alunos com idades superioras ao pré-escolar, diria mesmo, acima do 2º ciclo, pelo que exige uma dimensão social que, devido à sua própria natureza, deve ter uma correspondência ideal de modo a ter em conta a perceção do outro no ambiente virtual de aprendizagem que se designa por presença social, tal como se verificam as interações sociais em ambiente real.

Presença social é um termo da psicologia que relaciona a perceção do indivíduo com o modo como ele se sente na interação com os outros.  Nas aulas a distância online e noutras interações, como a que se realiza através das redes sociais e dos meio assíncronos como o e-mail, uma das formas de facilitar a presença social pode ser através de estratégias, tais como os emoticons ou emojis, que os intervenientes utilizam para comunicar emoções e estabelecer uma ligação interpessoal.

Em aprendizagem online a perceção que os sujeitos têm sobre o grau de proximidade estabelecida entre os vários participantes (neste caso o professor e os alunos), reflete-se na dinâmica da relação entre as pessoas em presença virtual. Nesta perspetiva, tal perceção é influenciada tanto pelos meios tecnológicos como a videoconferência, teleconferência, troca de mensagens escritas entre dois ou mais utilizadores de uma rede de computadores em tempo real (chats) que promovem a interação como pelas características pessoais de cada um dos sujeitos.

Assim, presença social é então a capacidade de os participantes numa comunidade de aprendizagem online se projetarem social e emocionalmente, como pessoas reais, isto é, o grau como um sujeito é percebido como real numa comunicação online.

Alguns estudos como os de Richardson e Zittle (Examining Social Presence in online Courses in Relation to Students' Perceived Learning and Satisfaction, 2003) observaram que a perceção de presença social está relacionada com a satisfação sentida pelos alunos em cursos online. Se experimentam uma fraca ligação entre si ou com o professor sentem-se isolados e céticos em relação à aprendizagem proporcionada e, consequentemente, revelam insatisfação. Os alunos que mostram elevados níveis de presença social, apresentam maior aprendizagem e sentem-se mais satisfeitos. Por outro lado, também demonstraram que há uma relação entre o sucesso ou fracasso individual com a amplitude com que os alunos ultrapassam o sentimento de se sentirem preteridos para se sentirem incluídos.

Inquéritos efetuados a alunos, alguns anos antes da solução apressadamente criada para remediar os efeitos do confinamento dos alunos devido à covid-9 mostraram, através de questionários e entrevistas realizadas a alunos que tinham participado neste tipo de ensino (muito antes da covid), que um dos aspetos mais importantes é o comportamento do professor ou tutor. A maior parte dos alunos referiu interação regular, a proximidade emocional, o feedback imediato e construtivo, assim como o incentivo do professor para o empenho na construção de conhecimento, como aspetos que influenciam a satisfação com o curso.

Outros pontos mencionados pelos alunos que afetam a satisfação com a aprendizagem online foram falta de tempo para completar as tarefas propostas, os relacionamentos difíceis com colegas e pouca experiência com as tecnologias da informação e comunicação. Ora, depois da experiência do confinamento forçado pela pandemia o descontentamento os alunos, pelo que se tem constado, insere-se neste último ponto.

Tudo isto nos conduz ao tema que abordei, há algum tempo, durante a fase preparatória e exploratória para doutoramento em ensino/aprendizagem online cujo problemática se relaciona com a questão da presença social a que poderão aceder aqui numa versãoresumida.


Os artimanhosos

 

Artimanhoso, adjetivo constituído por artimanha + manhoso, é aquele que age com artimanha, que utiliza uma forma hábil, e sobretudo engenhosa, de conseguir algo com astúcia levando outros ao engano sobre si e sobre o que pretende. A artimanha é a arte dos fingidores que são os que dissimulam, que querem passar por aquilo que não são, que disfarçam.

Para penetrar nas gretas das fraquezas do outro os artimanhosos utilizam caminhos orientados por via da manipulação dos seus relatos. Podemos falar de tramas, de urdiduras, de fiar relatos, de tecer história.

Sou mais prosaico do que poético, mas, por coincidência, através de pesquisas que efetuei vieram ter à minha mão alguns poemas que nada têm a ver com este tema, mas que me serviram como metáforas para uma caraterização acutilante deste tipo de indivíduos. Um deles é da autoria da poetisa norte-americana Louise Glück, Prémio Nobel da Literatura em 2020, da qual utilizei o poema “O Poder de Circe” publicado na antologia Rosa do Mundo, Poemas Para o Futuro (2001), da Assírio & Alvim, que aqui transcrevo parcialmente:

“Nunca transformei ninguém em porco. / Algumas pessoas são porcos; / faço-os parecerem-se a porcos. /Estou farta do vosso mundo / que permite que o exterior disfarce o interior.

Os teus homens não eram maus; / uma vida indisciplinada / fez-lhes isso. Como porcos, / sob o meu cuidado / e das minhas ajudantes, / tornaram-se mais dóceis.”

Outros versos, do poema “Em Creta” de Sophia de Mello Breyner Andresen, "Antologia", págs. 253, 254 e 255, Círculo de Poesia Moraes Editores, 3ª. edição, 1975 podem servir para o mesmo fim: / Porque pertenço à raça daqueles que / [percorrem o labirinto, / Sem jamais perderem o fio de linho da palavra.

Fernando Pessoa escreveu um poema intitulado “Autopsicografia” em que, logo na primeira quadra, afirma que “O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor…, mas os artimanhosos são fingidores sem sentir dor”.

Os artimanhosos não são poetas, por isso, pertencem ao grupo daqueles que, por labirintos intricados, jamais perdem o fito sobre quem, o quê e como pretendem atacar.

O cinema e a televisão são os meios onde mais se vislumbra o fingimento, onde se faz que tudo pareça verdade ou dela se aproxime. Tal é o caso das novelas televisivas e de programas como os “reality shows” como o Big Brother onde se constroem mundos do faz de conta para parecerem reais. Não através de artimanhas, mas pela construção/representação exagerada da realidade assente na produção de um espetáculo que leve o telespectador a acreditar que, o que vê e ouve é de facto real. Os reality shows mesmo parecendo em tempo real, os intervenientes ao saberem que estão a ser gravados fazem dos seus atos serem reais.

Os telespectadores, face à narrativa ficcional teatralizada, vão-se identificando, ou não, com os personagens nos seus múltiplos atributos. A identificação leva o telespectador a reconhecer-se com personagens interpretadas pelo ator, assumindo um ou mais dos seus atributos distintivos. Pode também projetar-se nas personagens que é o ato pelo qual o indivíduo atribui a outros, (os personagens), os seus próprios sentimentos ou manifesta a sua natureza própria. Assim, em síntese: a identificação é o movimento de fora para dentro e a projeção é o movimento de dentro para fora, (conceitos desenvolvidos pelo filósofo Edgar Morin, “A experiência do cinema”, 2003, p.143-172).

Na vida real é a projeção em mim do “outro” que é alguém que se admira ou de inveja e que se tenta imitar ou superar. Na nossa vida cotidiana privada e social estamos em permanente projeção-identificação desempenhando continuamente um papel, tornando-se, por vezes, em algumas pessoas num processo patológico.

Seja no cinema, seja na televisão, quando identificamos as imagens no ecrã e as associamos à vida real pomos as nossas projeções identificações em ação. A imagens cinematográficas e televisivas em que falta, na prática, uma comprovada realidade, detêm um poder afetivo muito forte, que a identifica como espetáculo dado pelo encanto da imagem que realça a visão das coisas simples e cotidianas. Um filme ou uma telenovela não são os mesmos para dois espectadores. A projeção-identificação é um processo em que sentimentos e obsessões se projetam na imaginação sobre as coisas e seres reais.

Alguém que se admira e que se tenta imitar é uma identificação com o outro e, ao mesmo tempo, o outro é incorporado na personalidade é um anel de transferências recíprocas.

Nos grupos familiares os astuciosos e artimanhosos, através da trica, vão construindo, junto dos que orbitam à sua volta, intrigas para bloquear laços entre parentescos. A manipulação é o ato de tentar influenciar alguém, seja para benefício próprio, seja ou para dito benefício da pessoa que está a ser manipulada, e a arma dos astuciosos.

Quem já passou os olhos pelo clássico “Ilustre Casa de Ramires” de Eça de Queiroz apercebeu-se da arte da artimanha em contexto de sedução quando a personagem Gracinha confeciona ovos queimados, muito do gosto do Fidalgo, para lhe agradar e reconquistar o antigo noivo, e quando da artimanha sedutora da D. Ana Lucena oferece, indiretamente através de uma amiga, um cesto com perfumados pêssegos da Feitosa ao Fidalgo da Torre (pág. 152).

Algumas peças teatrais têm caracterizado a atitude da artimanha. Recordo especialmente Moliére, e também Gil Vicente, no Auto da Barca do Inferno onde o onzeneiro tenta convencer o diabo a deixá-lo regressar a terra em troca de uma recompensa quando regressasse à barca.  Entra aqui a personagens da peça, manipuladora e influenciadora fazendo acreditar os outros em algo, pela manipulação e pela influência a acreditar em algo para tomar uma decisão.

O artimanhoso na hipótese de enviar propostas inaceitáveis para uma outra parte, ao agir de forma demorada, artimanhosa, desleal, e de forma obstinada, estará a atuar contrariamente à boa-fé, ao utilizar artimanhas para conseguir os seus fins. Furtivamente consegue fugir através das suas artimanhas e astúcias para se aproveitar do que mais lhe agrade sem que alguém se aperceba das suas verdadeiras intenções.

O que se tem passado nos EUA que culminou ontem com a invasão do Capitólio, por incitação do presidente Trump, é consequência das suas atitudes e pelas artimanhas que ele construiu para induzir o seu eleitorado a sentir-se perdedor sem se aperceber que está a ser por ele manipulado. Depois de ter certeza de que perderia as eleições engendrou um estratagema que levasse a esta consequência criada pela sua artimanha, sem se preocupar com o prejuízo causado ao seu próprio país. Para pessoas como Trump as eleições são desnecessárias. Também ao nível social, empresarial e outros agregados, os artimanhosos tudo fazem para empurrar para fora do seu círculo quem já não satisfaça os seus anseios expectáveis.

Na política uns, e continuo a referir-me aos artimanhosos, procuram a manutenção do poder a todo o custo, outros procuram degenerar a coesão social, outros ainda, procuram destruir a união e harmonia nos grupos de parentesco seus ou de outros, mas todos utilizam os mesmos procedimentos conducentes ao cumprimento de objetivos moralmente pouco saudáveis que resultam em desconfiança nos outros.

No palco do confronto do debate democrático e do antagonismo das ideias e soluções para os problemas, representa-se uma espécie de farsa expressa por atitudes e comportamentos, crenças e ingenuidades onde as artimanhas discursivas são apoiadas por narrativas falsas e adulteradas, altamente ideológicas e interesseiras dos políticos e dos partidos e seus aliados que são exímios em enganar, distorcer e ludibriar quem os escuta para obtenção de benefícios próprios. Nos processos eleitorais as artimanhas típicas inserem-se no discurso ideológico e populista da crítica aos adversários tendo em vista a obtenção do poder a que preço for.

Na política a artimanha pode nem sempre ser criticável nos regimes ditatoriais, como foi o caso do salazarismo em Portugal, o recurso a artimanhas e metáforas necessárias à linguagem literária e noticiosa eram utilizadas para driblar a censura e era prática corrente, até no jornalismo que nada tinha a ver com falsas notícias, era apenas uma forma de comunicar os factos verdadeiros por meias palavras.

Ao nível dos diversos grupos sociais as artimanhas também se evidenciam no palavreado e nas atitudes aparentemente conciliadoras, cujo objetivo é a obtenção de benefícios que, não sendo monetários, se situam na satisfação pessoal, por vezes são motivados por invejas, para superação dum sentimento subconsciente e duma certa inferioridade da própria condição do sujeito, mais aparente do que real, devido ao ambiente em que viveram durante as primeiras fases da vida. Os artimanhosos são dominados pela inveja e servem-se de todos os meios para igualarem ou superarem os que consideram ser seus antagonistas, sejam eles nos grupos de parentesco ou simplesmente de amigos e conhecidos.

O manipulador, quando em situação de privilégio, impulsiona outras personagens do contexto político e social onde se insere a agirem de acordo com os seus objetivos não revelados. A artimanha coexiste nos mais diversos níveis da sociedade: na política, na arte, no trabalho, nas escolas, do futebol, nas relações sociais de bairro e doméstico, nos comentadores televisivos, nos intervenientes em debates, nos que pretendem influenciar a opinião pública, os chamados líderes de opinião, através dos órgãos de comunicação.

A obsessão pela gabarolice de mostrar ser mais dos que os outros manifesta-se também no seio dos grupos de parentesco formais ou informais, lugar onde os artimanhosos agem consciente ou inconscientemente, levando até à separação de pessoas com objetivos egoístas ou até de pequenas invejas. Muitos servem-se do casamento como artimanha para agarrar um elevador social que os possa catapultar e os retire da sua pequenez. 

Contudo, é na política onde o fingimento se eleva ao mais alto nível no sentido de convencer os outros fingidores seus opositores. Os líderes na política são tão falsos e artimanhosos que até enganam os que os escolheram em eleições, defraudando-os logo que se encontrem no poder.

Veja-se o caso do que hoje foi notícia de que o PSD resolveu apresentar uma queixa-crime contra o primeiro-ministro, depois de António Costa ter acusado Paulo Rangel, Miguel Poiares Maduro e Ricardo Batista Leite de estarem envolvidos numa campanha para denegrir a imagem externa do país. Ora aqui está um caso de que, aparentemente, um político acusa outros políticos de artimanhas. Nada nos garante a veracidade, ou não, do que terá sido dito por aqueles políticos do PSD. Fazem agora de damas ofendidas para que possam vir a ser notícia, quando o mesmo é por eles feito a outros estão sempre desculpados. Políticos de tanta pequenez nunca se viu, talvez seja por Portugal ter um espaço geográfico também pequenino.

Isto pode não ser o que parece, pode ser apenas uma manobra/artimanha para fazer oposição ao primeiro-ministro e ao Governo. Pode até ser a deformação de uma realidade para justificar ou encontrar argumento para fazer oposição. Se haverá ou não envolvimento em campanha para denegrir a imagem externa do país nunca chegaremos a conhecer a verdade absoluta e mais profunda, apenas os seus indícios, as suas variantes, que podem ser várias, as versões que se engendram e as suas infinitas interpretações.

Finalizo este texto sobre as artimanhas encontradas e inerentes a uma leitura temática, preferencialmente à estrutural, (alcançados através da reconstrução da ordem das ideias de um texto), da “Ópera do Malandro” de Chico Buarque.  Embora na peça se pretenda evidenciar os aspetos político-sociais dum tipo de malandro, o transgressor, responsável pela lesão patrimonial e moral de um grupo social mais amplo, a sociedade brasileira do século XX denota, sobretudo, as "artimanhas" utilizadas pelos grupos dominantes política e economicamente para não perderem as conquistas. Podemos associar a esta peça o encontro da astúcia e da sedução como armas para atingir objetivos, não apenas na política, mas também noutros campos sem preconceitos preconizados pelos juízos de valor pessoais e sociais.  


As lições de Ressabiado Silva

O nome próprio “Ressabiado” não existe, é ficcionado. Tal nome próprio nunca terá sido posto a ninguém, a não ser como alcunha. Já viram com...