Este texto foi escrito em 2016, já lá vão exatamente cinco anos. Reli-o e continuo a considerá-lo atual pelo que resolvi publicá-lo novamente após uma curta revisão e inseri algumas atualizações até porque é tempo de eleições autárquicas em que o nosso povo é mais envolvido e motivado para ir às urnas para eleger o seu poder local.
Mas antes de continuar devo alertar para generalizações que não se deverão fazer. A generalização sendo uma operação mental que consiste em comparar as qualidades comuns a uma classe de indivíduos, desprezando as suas diferenças e reunindo essas qualidades comuns numa só ideia, corre-se o risco de transformar premissas em extensões arbitrárias de valores e de avaliação podendo incorrer numa falácia. As generalizações podem, imprudentemente, levar a retirar uma conclusão geral da análise de uma situação particular ou de situações particulares que não são representativas de todos os casos possíveis.
Dizer, por exemplo, que os portugueses têm uma determinada
característica estaria a incluir também portugueses que poderão não a ter.
Exemplo: Pedro é político e boa pessoa. Por isso, todos os políticos são boas
pessoas. Também quando se diz que os portugueses são invejosos não quer dizer
que os portugueses X, Y e Z o sejam.
Quando me refiro à gente do meu país ou da minha terra eu e
o leitor, poderemos, ou não, estar incluídos nos atributos referidos. Se for o
caso, cada um que calce o que lhe sirva. Muitos escritores o fizeram sem apelo
nem agravo atribuindo-lhes características que nem todos tinham.
Resta esclarecer, para que puristas de género não me venham
acusar de “machista”, que as palavras que escrevi quando foram do género
masculino referem-se também ao feminino, evitando os parênteses à frente para
(o/os) e o (a/as). Neste contexto, os portugueses e a gente do meu país são
todos independentemente do género.
Posto isto, relembro o refrão “Ó
gente da minha terra” de um fado interpretado por Mariza entre outros cantores.
Contrariamente ao que consta por aí não foi ela que o escreveu. O mérito
deve-se à excecional interpretação. Esta canção tem música de Tiago Machado e poema
de Amália Rodrigues e o refrão versa assim:
Ó gente da minha terra
Agora é que eu percebi,
Esta tristeza que trago
Foi de vós que recebi.
Inicio este “post” com esta quadra porque recordei autores
como Eça de Queiroz e Guerra Junqueiro e outros tantos escritores e políticos
que nas suas obras, cada um à sua maneira, traçaram perfis dos portugueses.
O povo português é muito acolhedor, sociável e hospitaleiro
e recebe bem tudo quanto é estrangeiro e nos visita. Mostra, a seu modo, a sua
subserviência disfarçada de hospitalidade. Genericamente é um povo que ajuda o
seu próximo quando necessário, é solidário quando se trata de defesa dos
interesses da sua comunidade em que se integra. Falsamente pacífico,
introvertido apesar de alegre, preocupa-se mais com a vida dos outros do que em
expor a sua. Há várias citações sobre os portugueses, algumas delas
antagónicas.
Vejamos algumas dentre as várias personalidades do mundo da
literatura e da política. Começo pelo Padre António Vieira, filósofo, escritor
e orador português do século VIII que, numa das suas cartas escreveu: “Dizem
que temos valor, mas que nos falta dinheiro e união; e todos nos prognosticam
os fados que naturalmente se seguem destas infelizes premissas.”. Tem-se
confirmado isto, os políticos que o digam.
Em 1997 António Lobo Antunes escrevia: “Eu gosto desta
terra. Nós somos feios, pequenos, estúpidos, mas eu gosto disto.” Enfim,
uma forma de nos ver.
A gente do meu país tem uma incapacidade de autocrítica,
tudo o que se faz de mal a culpa é sempre dos outros. Teve e tem a mania das
grandezas. Fazer-se mais do que aquilo que é, é um dos seus atributos. Mostra
aos outros aquilo que, na maior parte das vezes, não é. A
passividade e a falta de dinamismo são doenças sociais e crónicas que lhes
foram inoculadas pela ditadura de Salazar que leva a nossa gente a ficar à
espera que os problemas desapareçam. O "pai" Salazar e o clericalismo
católico resolviam tudo menos a pobreza e a miséria, que a ambos interessava e
estava patente nos seus discursos. "Não discutimos Deus e a
virtude. Não discutimos a pátria e a sua história. Não discutimos a autoridade
e o seu prestígio. Não discutimos a família e a sua moral. Não discutimos a
glória do trabalho e o seu dever.". Pronunciava Salazar num discurso
em 1936. "Ensinai aos vossos filhos o trabalho, ensinai
às vossas filhas a modéstia, ensinai a todos
a virtude da economia. E se não poderdes fazer
deles santos, fazei ao menos deles cristãos."
A não ser na altura dos descobrimentos, salvo algumas
exceções, a originalidade da gente do meu país é parca, imita o que vem de
fora, às vezes nem sempre o melhor. Não valoriza aquilo que tem de bom. Busca
no estrangeiro o que há de pior e que passa a chamar de novo conceito. Não
procura o que o pode distinguir pela diferença.
Felizmente que já pós a revolução do 25 de Abril muitos
portugueses e portuguesas distinguiram-se lá fora. Aliás, os portugueses que
emigraram eram considerados muito bons trabalhadores. Mas, cá dentro o trabalho
é bom para os outros. Talvez resquícios do colonialismo. O aumento de direitos,
regalias e de salários estão na ordem do dia e, sempre que possível, a
redução dos deveres.
Estão na moda há algum tempo os chamados novos conceitos,
termo querido pelos que são escolhidos a dedo e que são chamados às televisões
para perorarem sobre os seus negócios inovadores que, passados meses ou poucos
anos, acabam por encerrar portas. Quase sempre estes inovadores não transportam
a qualidade até quem se destina o produto ou serviço. Muito pelo contrário.
Caso típico é o da restauração. Proliferam por aí restaurantezitos, os tais dos
novos conceitos onde passaram a colocar toalhetes de papel ou de plástico “made
in China” colocados sobre uma mesa de ripas de madeira, onde, por vezes,
mal cabem o prato e os talheres que se dobram ao cortar o hambúrguer e onde as
pessoas se sentam em pequenas cadeiras do mesmo tipo ripado ficando conforme os
casos com parte do traseiro fora do assento. Mas o mais caricato é que alguns
colocam no interior mesas altas com cadeiras que é preciso escalar para chegar
à mesa para comer amostras de iguarias, a que chamam degustação, inventadas
pelo chef.
Depois há a ementa. Sob a capa de gastronomia tradicional
portuguesa mostram preços com poucas diferenças dos restaurantes clássicos
decentes. Ementas enganadoras proliferam desde pataniscas de bacalhau com arroz
de feijão que são farinha frita com o sabor do dito. Esparguete à bolonhesa com
escassez de carne picada que se afoga no meio duma tomatada do tipo
"Ketchup". Hambúrguer no prato com salada e batatas fritas
identificadas pelo sabor como de proveniência das mais conceituadas indústrias
de congelação alimentar, entre outras iguarias do género. Onde está o bom sabor
tradicional da boa batata frita caseira que nas verdadeiras tascas se servia?
Não está. É batata congelada frita ou pré-frita.
Os fãs dos novos "conceitos" gastronómicos destes
insípidos locais a quem a critica faz publicidade. A esses locais “sem caráter”
atribuem os seus inovadores proprietários nomes à antiga portuguesa que se
iniciam por Tasca do…, ou da…, Taberna da…, ou do…, Mercado
de…, ou da… Muitos deles pertencem a cadeias que proliferam pelas
principais cidades do país. E lá vamos nós, a gente portuguesinha a correr para
desfrutar do novo conceito do bem comer e bem servir. No entanto quem pensa
diferente e emite outros juízos é de imediato apelidado de conservador de
retrógrado que se recusa acompanhar o progresso, ou de um perfeito
"cota" por não aderir aos tais novos "conceitos".
Mas não ficamos por aqui. Vamos agora à língua portuguesa.
Recupero da minha memória Lauro António que tinha um programa de crítica de
cinema na televisão. Para fazer a apresentação do excerto dum filme para
divulgação apresentava a peça de lançamento que Herman José posteriormente
parodiou numa das suas peças humorísticas dizendo a certa altura: “let´s
look at a trailer”. Isto passou-se há umas dezenas de anos.
A riqueza da língua portuguesa é depauperada pelos “senhores
da comunicação”, sobretudo da rádio, e por quem convidam, que usam e abusam de
palavras inglesas para se exprimirem, produzindo com elas uma amálgama de
frases das quais se perde o verdadeiro significado. O português não é uma
língua falada por meia dúzia de pessoas, porra!
Se alguém quiser dar-se ao trabalho de analisar por exemplo
de línguas como a francesa e a espanhola não encontrará palavras de origem
anglo-saxónica no seu vocabulário mesmo em expressões científicas e técnicas.
Para salvaguardar a sua língua procuram termos adequados para o mesmo conceito.
Sim, já sabemos que há uma linguagem científica que é
internacional e que as comunicações em congressos e outros eventos, são feitos
em inglês que é a língua oficial. A distinção é que, internamente, naqueles
dois países procuram termos equivalente para o seu vocabulário.
Mas nós, a gente portuguesa, queremos parecer originais, dar
nas vistas e temos a necessidade de internacionalização para se justificar a
utilização da língua inglesa em Portugal. A internacionalização é lá para fora
não é cá para dentro. Veja-se o caso de muitas universidades e outras
instituições que, para se darem ares de internacionalização utilizam nas suas
designações palavras inglesas: Nova School of Business and
Economics; Católica Lisbon School of Business & Economics, entre
outras.
Estamos a abdicar de um dos valores mais importante na nossa
cultura, a língua. As televisões e os emissores de rádio dão uma ajuda para
esta abdicação. A ânsia de ser “cool” é tal que usam e abusam de termos
ingleses que muitos espetadores e ouvintes desses canais nem sabem o
significado. São sumidades que falam para outras sumidades da modernidade
bacoca.
Será que os linguistas portugueses não conseguirão encontrar
termos adequados em português de palavras inglesas técnicas e específicas da
linguagem científica? Estou em crer que sim. Mas, como somos portugueses
gostamos de mostrar que estamos “in” e, de certo, modo mostrarmos a
nossa subserviência, cedendo até na própria língua, perdendo aos poucos o pouco
orgulho que ainda temos (exceção feita ao futebol). A nossa gente está a ser
inconscientemente aculturada a vários níveis. A apropriação desses
estrangeirismos está na moda, faz parte do parecer, e não do ser. Fica bem.
Parece bem. É cool.
Vejamos apenas alguns termos que se encontram por aí na
gíria da comunicação social: Stakeholder, Cool, Red Carpet, Roof, In, Out,
Sunset, Skills, Frendly, Brunch, Players, Pack, Resort, Look, Fashion.
A partir destes termos amplamente utilizados podemos
imaginar uma reportagem com uma locução como esta:
O sunset de hoje foi abrilhantado pela fashion
e pelo look das personalidades na nossa vida social e artística que
atravessaram a red carpet. O acontecimento cool foi
posteriormente continuado com uma conferência sobre as possibilidades de
negócio que tais eventos podem possibilitar e onde os players negociaram
com outros stackeholders. Um dos intervenientes referiu as skills
necessárias para o sucesso deste tipo de negócio. O evento frendly
foi organizado num conhecido Resort de luxo onde foi servido um brunch.
Cool, não acham?
O fundador do PSD, Francisco Sá Carneiro disse em 1975
“Portugal precisa de apoio internacional generalizado e merece-o. Esse apoio,
venha de onde vier, tem de respeitar a nossa independência e uma rigorosa não
ingerência nos nossos assuntos.” O que vemos hoje é o contrário, sancionado
pelo governo dos quatro anos de Passos Coelho. O desrespeito pela nossa
independência também passa pela língua. Muita gente da nossa terra sustentou
esta tese com o argumento de que quem empresta até nos pode matar se quiser,
ainda que se cumpra o contrato. E há ainda quem aplauda teses como estas. Tudo
o que é estrangeiro, mesmo que seja péssimo, é bom para a nossa gente. Tem que
respeitar o estrangeiro mesmo que a faça padecer e humilhar. Até quando se discutiam
as sanções a Portugal muita da nossa gente letrada sintonizava com europeus da
união dizendo que regras são regras e devem ser cumpridas.
O vandalismo que infelizmente existe em toda a parte em
Portugal tem mais requinte. Nisso também temos que imitar e sermos ainda
melhores. Tens um carro novo? Eu risco-o de uma ponta a outra. Para que serve
uma floresta? Apenas para dar sombra e se é do vizinho rival ainda melhor,
incendeia-se. O ramo da tua árvore incomoda-me, faz sombra na minha horta, se
não o cortas deito-te a árvore abaixo. Há relatos especialmente a norte de
homicídios devido à utilização de águas de um riacho. Um puxava a água e não
deixava o outro regar. Não há negociação. Mata-se e pronto. As reservas
naturais são anti progresso, não deixam que se construa. Incendeia-se e mata-se
o bicho.
Somos um país de gente insana que provoca incêndios
premeditados nas nossas florestas, loucos, alcoólicos, drogados, desempregados,
dizem-nos nas televisões e, como crédulos que somos acreditamos. Não há rede organizada,
mas atos isolados o que confirma a insanidade das gentes. Somos autores de
espetáculos gratuitos para as televisões que vibram com tanta notícia.
Danificar com rabiscos, a que chamam "grafitis",
paredes de edifícios públicos e outros, faz parte do grupo da gente do
vandalismo. Excluo aqui as pinturas que são uma expressão artística urbana
desde que escolhido o local certo. Esses que as fazem são outra gente.
A chamada mania das grandezas é outra nota que define a
nossa gente e a que os sucessivos governos vão dando expressão, quer em tempo
de abundância, quer em tempo de restrições, o chamado tempo das "vacas
magras". Se uns fazem nós também temos que fazer, pensa a gente das
autarquias. Quando há dinheiro esbanja-se em coisas de utilidade discutível
para a comunidade local, depois vive-se na penúria.
Um caso paradigmático da mania das grandezas é o Convento de
Mafra, construção iniciada por D. João V com o ouro que navegava desde o
Brasil. Homem fervorosamente católico, não está com meias medidas, e, para
cumprimento duma promessa, caso obtivesse sucessão do seu casamento com a
rainha D. Maria Ana de Áustria manda construir um convento gigantesco. Alto e
importante desígnio nacional foi esse. E, a gente da nossa terra, vivendo na
miséria, aplaudia com o apoio clerical. Maior convento não haveria no mundo,
diziam.
O sentimento que se tem pela prosperidade e pelo desejo de
possuir o que outros possuem faz parte e é característico da gente da minha
terra. Tu tens? Eu invejo. Tu compras? Eu também. Tu viajas? Eu também. Se
possível ainda melhor, mesmo que isso me custe os olhos da cara e me endivide.
A gente do interior, fechada sobre si e pouco comunicativa,
quando algum afoito intrometido tenta conversa refugia-se no estado do tempo. É
a conversa da treta sem sentido cujo diálogo é quase sempre o mesmo. Veja-se
este exemplo:
- Bom-dia D. Zulmira! Então está a regar a suas couves?
- Pois é. Tem que ser.
- O tempo não tem estado nada bom. Tem sido uma desgraça
para as alfaces.
- Tenha fé senhora. Deus há de ajudar.
- Olhe, nem queira saber! Tinha lá um feijão verde "sameado"
estragou-se-me todo. Com isto assim não sei onde vamos parar.
- Tudo isto é uma calamidade e o governo não faz nada….
Basta escutar nos locais do interior a conversa entre vizinhos e
conhecidos.
A gente da agricultura, não o da courela, mas o outro,
apresenta sempre a mesma escusa quando as televisões os abordam. No inverno é o
frio e a chuva e no verão é o calor e a seca. Virgílio Ferreira tinha razão
quando disse que "Frente a uma situação difícil, o português opta pela
espera de um milagre ou pela descompressão de uma anedota. O grave disto é que
o milagre não vem e a anedota descomprime de tudo. Ficamos assim à mercê do azar
e nem restos de razão para mexer um dedo".
Face a algo imprevisto ou revés não é raro ver por esse país
a mobilização de multidões, motivadas pela religião, em procissões de
agradecimento aos mais diversos santinhos e santinhas de qualquer coisa ou lugar,
e há mais do que muitos, pelo bem com que os agraciou ou pelo mal ter passado,
não importa como aconteceu. Agradece-se pelo que aconteceu, ou pelo que parou
de acontecer ou roga-se para que não volte a acontecer, e ainda para o que vier
a acontecer. Depois regressa-se a casa. É o efeito da religiosidade da
gente que vive obcecada com o divino que tudo resolve e a quem tudo é devido.
E aqui a gente da minha terra divide-se entre o norte e o
sul do rio Tejo. A norte o conservadorismo bacoco gerado pela ignorância. É
como se um certo tipo de gene tivesse marcado a gente por sessenta anos de
mentalização de Salazar que deu os seus frutos e se tem propagado através das
gerações. A sul a gente é mais afoita e sem medo e também conservadora, mas em
sentido oposto porque aí a religião conta menos. São os "mouros" como
lhe chamam os do Norte. Não se deixam conduzir por homilias com matizes de
política disfarçada.
A gente da minha terra faz manifestações e revolta-se quando
um pároco é substituído, mas permanece queda a tudo o resto, mesmo ao que possa
prejudicar ou mudar a sua vida ou a da comunidade. Facilmente manipulada por
outras gentes lá se vai manifestando, de vez em quando, contra algo que não
está bem, sobretudo quando descontente com o partido que ganhou ou não gosta de
um primeiro-ministro pelos mais disparatados motivos.
As gentes de Portugal não gostam de discutir o papel da
religião dominante, deveria dizer antes clericalismo dominante aceitando
acriticamente a sua moralidade hipócrita. Seguem a preceito o postulado de
Salazar "Portugal nasceu à sombra da Igreja e
a religião católica foi desde o começo o elemento formativo da alma
da nação e o traço dominante do carácter do povo português".
Somos ainda uma gente de fé que peregrina e cumpre promessas
por graças que lhe foram concedidas por santos milagreiros. Locais de
peregrinação são casos paradigmáticos onde se vão cumprir promessas de graças
julgadas concedidas e fazer pedidos para aquilo que os Homens não lhes podem
dar.
Somos uma gente maioritariamente cristã e crédula a quem é
prometido o céu e acredita nos pregadores dos ofícios religiosos quando lhe
dizem que as desigualdades sociais não têm importância na nossa curta vida, são
condições de provação que serão compensadas na vida eterna. Assim é alimentado
o espírito das mentes ingénuas e boas das gentes deste Portugal.
Em fevereiro de 1878 Eça de Queiroz em Cartas a Joaquim
Araújo escrevia que “(...) o povo em Portugal, nas províncias, não é
católico - é padrista: que sabe ele da moral do cristianismo? da teologia? do
ultramontanismo (partidário da autoridade absoluta do papa) ? Sabe do
santo de barro que tem em casa, e do cura que está na igreja."
Em 2012 a revista Sábado publicou uma crónica "Nós, os
Portugueses" onde caracterizava a gente portuguesa escrevendo a certa
altura: "Como se pode caracterizar, ainda que de maneira genérica, o povo
português? Somos atenciosos, cordiais, flexíveis, facilmente nos moldamos à
cultura do interlocutor e dialogamos, sem reservas, sobre diversos temas de forma
animada. Contudo, e ainda que possamos achar uma certa piada às graças sobre os
atrasos sistemáticos, para encontros, ou sobre o não cumprimento de prazos,
apreciamos que os nossos “brandos e bons costumes” sejam respeitados!".
A arrogância e superioridade da nossa gente, quando em
contacto com povos de outras culturas africanas e orientais, é notório pelo
tratamento “por tu” sem que haja qualquer justificação de proximidade. É uma
espécie de mostra de superioridade face ao seu interlocutor de outra cultura ou
de outra cor de pele. Mas, cuspir para o chão e deitar objetos no espaço por
onde passa ou frequenta que atingem o auge em momentos de concentração popular
são reveladores da sua "superioridade".
Há outra gente, que frequenta meios cujas revistas
cor-de-rosa se encarregam de divulgar. A gente do meu país, especialmente a das
grandes cidades, não passa sem a sua dose de cultura. Telenovelas, "Reality
Shows” tais como “Big Brother”, "Quinta das celebridades",
"Love on Top" e outras rasquices televisivas semelhantes,
fazem parte das suas preferências culturais. A estas ainda se incluem a leitura
de revistas cor-de-rosa que pode ser comprovado pelo número das tiragens
semanais e onde proliferam fotografias de colunáveis a que se atribuem nomes de
boa origem inglesa como "socialites", que passou a ser
incorporado na língua portuguesa, tal e qual, jet set e outras
piroseiras, misturadas com outras gentes que deixam devassar a sua vida
privada.
Milhares das nossas gentes frequentam redes sociais,
especialmente o Instagram, onde se expõem de corpo e alma, sobretudo de
corpo, para recolherem muitos "likes” de seguidores(as) que os
levarão ao êxtase da visibilidade e exposição.
O voyeurismo da vida dos outros vende, aliena, leva ao
consumismo por imitação. Gente anónima, que quer mostrar que existe, mas
sobretudo, atores de telenovela e outros como futebolistas, treinadores,
apresentadores de TV, políticos, banqueiros, cozinheiros (a quem agora se
passou a chamar "chefs"), empresários de renome, ilustres
desconhecidos (as) catapultados (as) pelo atrelar a outros (as) já bem
conhecidos (as), sem profissão e por aí adiante, são vasculhados e expõem-se,
deixam revelar a sua vida, a sua intimidade familiar, fazem poses frente às
câmaras para fotografias que sabem sairão nas próximas edições. Passam a ser
referências, exemplos modistas para quem compra e lê essas revistas e vê
programas televisivos do género.
Nada escapa ao vasculho. Uns põem-se a jeito, outros para se
tornarem popularuchos porque, quem não aparece esquece como diz a nossa gente.
Reis e rainhas, príncipes e princesas, condes e condessas todos são servidos de
bandeja à gente ávida de escândalos e conhecimento do modo de vida de tais
nobres figuras. A vida dessa outra gente é o que interessa. Casamentos, trajes,
divórcios, nascimentos, batizados, aniversários, festas, discotecas são
essenciais são o pão para a alma.
É o mundo que tem material para os cronistas da vida mundana
cuja pobreza e vazio intelectual são evidentes para quem os vê e escuta com o
distanciamento necessário em alguns programas televisivos. Essa gente
comentadora é colocada à frente das câmaras para abordar temas sérios com uma
frivolidade confrangedora. Não é por acaso que programas de qualidade duvidosa
têm as audiências que têm. É o mundo da outra gente, que a nossa gente ajuda a
viver. Os canais de televisão oferecem conteúdos que as gentes gostam de ver.
Dá à gente o que ela quer. Cabe aqui a pergunta que é de saber quem surgiu
primeiro, se o ovo ou a galinha, no sentido de saber se não terão sido criados
certos “apetites” que depois são exigidos como ofertas. Dar a provar para gerar
necessidade.
Fertiliza-lhes a imaginação, ajuda-os a sonhar com uma vida
a que nunca terão acesso. Ficam-se pelo sonho. E sonhar é bom. Fazem-lhe esquecer
e alienar-se do que é importante. Mas a realidade é inexorável, e volta sempre,
mas não constatam que é nela, e por ela, que devem lutar
De norte a sul as gentes do meu país adoram futebol. Sofrem,
vibram, participam de forma passiva uns, mais ativamente e furiosamente outros.
Deslocam-se atrás do seu clube para onde quer que vá. São desportistas do
passeio que transforma o espírito desportivo, que deveria ser pacífico, numa
atividade grupal insana e de rivalidades permanentes. E, mais uma vez, as televisões
ajudam com debates intermináveis onde os participantes gritam, ofendem-se
mutuamente, insultam-se, mexem-se convulsivamente nas cadeiras, gesticulam. Sei
lá? E isto tudo tem audiências. É o que importa afinal. Captar audiências à
custa da confusão que desinforma, mais do que informa.
Os senhores da bola são gente que se dão ares de
especialistas e que acha que o futebol também é uma ciência com estatuto e
linguagem própria. Vê-se pelas declarações futebolísticas que são duma pobreza
confrangedora. Usam uma linguagem composta por palavras que juntas nada dizem
de objetivo. São os intelectuais da bola.
Vejamos alguns vídeos:
Retira-se que:
Sim… foi um bom jogo… Para mim e para a equipa… chegou-se
a um resultado positivo… Que era a vitória. Vamos festejar esta vitória e
pensar no próximo jogo. É sempre importante conseguir as vitórias…
Pois claro digo eu!... O óbvio.
Dedicatórias, vitórias do grupo da união e do trabalho… O
jogo já é história, temos que pensar é no próximo… Frase profunda do
comentador.
… compreensão que temos que fazer do adversário… Alta
psicologia.
Parabéns a todos… Que mais se poderia
dizer?
Não tenho nada a apontar aos meus jogadores. Fizemos tudo
para superar os cinco jogadores… Por várias vezes superámos quatro, por várias
vezes superámos três, nunca conseguimos ultrapassar os cinco, mas… foi
profundamente ingrato… Filosofia da melhor.
…jogo tradicionalmente difícil e tornou-se na
realidade difícil… porque (?) uma boa equipa, uma equipa que nas últimas
quatro jornadas teve três vitórias, uma equipa que se bate muito bem… nunca
desiste e via à procura do resultado… mas acabou por ganhar na minha perspetiva
a melhor equipa… tivemos as melhores oportunidades, podíamos ter feito um pouco
mais cedo… era um campo que tínhamos que vencer e que era uma jornada
importante… Do mal, o menos, em futebol o que mais se poderá dizer?
Nada… É o resto é o vazio…
Mas o seguinte vídeo mostra de facto a elegância e a fluidez
verbal da terminologia futebolística.
É disto que a gente do meu país, amante do futebol, gosta.
Por isso o futebol merece um pouco mais de desenvolvimento. Tendo pretensões a
mostra que há uma ciência futebolística, já que não o é pelo discurso pelo
menos tenta-o pelos métodos. Assim, fazem estatísticas com dados ao segundo de
golos marcados e por marcar, lances, remates à baliza por jogador, cartões
amarelos e vermelhos dos jogos, lesões por jogador, resumos semanais, mensais e
até anuais, comparações que não conduzem a resultado nenhum, nem contribuem
para nada a não ser demonstrar o indemonstrável. E, na época seguinte, nada se
avançou repete-se mais ou menos o que se disse na época anterior, até à
exaustão da paciência da outra parte de nossa gente que não vai em cantigas de
futebol enquanto tema de discussão.
Não há técnica, nem estatísticas nem o que quer que inventem
para prever quem ganha ou perde jogos, se assim fosse todos os especialistas
ganhavam o totobola. Os jogos ganham-se com as pernas dos jogadores e uma bola
a saltar dum lado para o outro até que haja uma abertura para ela entrar no
retângulo duma das balizas. Certezas nunca há. Os inquisidores futebolísticos,
porque há uma inquisição futebolística, escusam de culpabilizar treinadores e
jogadores lançando-os na próxima oportunidade à fogueira da opinião pública dos
adeptos e clubistas. É o que muitas vezes se verifica quando um clube perde um
jogo e, sobretudo, se for um campeonato.
É um fenómeno mundial, dizem sociólogos. Pois é, não é por
acaso. Não veem que tudo isto é, em todo o mundo, um negócio de milhões para
alguns. O futebol deixou de ser um desporto de competição para ser um mercado e
um negócio que a nossa gente e outras gentes alegremente acarinham. Se a isto
juntarmos ainda os furiosos gangues de adeptos que se autodenominam claques,
apadrinhadas pelos clubes, que utilizam a violência gratuita uns contra os
outros e contra outros cidadãos com intuitos desmoralizadores sobre as equipas
adversárias temos um perfeito caldo de cultura.
Para além do futebol há o delírio dos concertos e dos
festivais que começaram a proliferar por aí, especialmente durante os meses de
verão, (agora suspensos devido à covid-19), e tão do agrado especialmente da
nossa gente jovem mais urbana cujos ascendentes fugiram há muito do interior
para as grandes cidades para mudar da vida.
É o delírio. Todos os lugares querem ter visibilidade e a
melhor forma é um festival "rock". As televisões ajudarão à promoção.
São autênticas migrações de jovens deslocando-se de norte a sul para verem os
seus ídolos. As entradas são caras, sem contar com deslocações, estadia e
alimentação, mas os euros aparecem sempre. Para as contas do país da nossa
gente é que é o problema porque, o caché pago funciona como importações o que
vai ajudar ao desequilíbrio da balança comercial. São milhões de euros. Mas que
importa isso. Quem promove e organiza festivais sabe que é dinheiro em caixa e
daí a proliferação deste tipo de negócio. É bom porque movimenta as economias
locais, mas muito melhor é para quem os organiza. Até a “Festa do Avante” para
atrair a gente jovem convida grupos "rock". Ainda bem!
Mais uma vez nos dizem que não é só cá. Lá fora, no
estrangeiro, é o mesmo. Pois é, mas também nos dizem que somos um país pobre e
que temos que pagar com juros os milhares de milhões que a troika nos emprestou
por termos gasto acima das possibilidades. Afinal quem paga tudo isto?
Na política os jovens filhos da nossa gente ingressam pelas
juventudes partidárias. Gente jovem a quem a educação para os valores não lhes
foi transmitida nem incutida que quer obter o sucesso a qualquer preço.
Valem-se da intriga, da mentira, denegrindo pessoas… pegam na política do vale
tudo, do desdém pelo próximo que colocam ao serviço da política filiando-se num
partido que os possa catapultar para lugares onde possam viver à custa do
erário público.
Mesquinhez, inveja, egoísmo, mexeriquice, passividade,
iliteracia, conservadorismo a vários níveis, desprezo pelos bens de terceiros,
desprezo pelo nosso património cultural e florestal, dar importância ao
parecer, mais do que ao ser, etc., etc..
Mas nada disto é recente, pois Guerra Junqueiro dizia em
1896 que somos "Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio,
fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas,
sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes,
a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as
moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem
onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é
bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo
misterioso da alma nacional, - reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa
morta (...)”.
A imbecilidade reproduz-se ao longo dos anos e neste século
XXI mantém-se, emerge sempre que uma oportunidade surge. O facto novo que
confirma a dose de estupidez que agora começou a percorrer a nossa gente urbana
são as manifestações
negacionistas. Grupelhos de gente do meu país, manipulada pelas redes
sociais, que rejeita hoje as recomendações resultantes da investigação
científica sobre vacinação e alterações climáticas agitam-se com teorias da
conspiração e pós-verdades ficando-se pelo domínio da estupidez demonstrada em
manifestações de ódio, rebeldes, agressivas e sem nexo.
É a gente do meu país!