Política

Ideologia na economia de mercado e a especulação imobiliária a que só alguns querem ter direito

A direita gosta de designar o Bloco de Esquerda como a esquerda caviar esquecendo-se de que é ela própria é toda caviar e pretende para si o melhor, o caviar “Bloco de Esquerdaluga”, daí não gostar muito de concorrência.


Vivemos numa Economia de mercado, sistema económico em que os agentes económicos (empresas, bancos, prestadoras de serviços, etc.) podem atuar com pouca interferência dos governos. É um sistema típico da economia capitalista e um dos pilares apoiados por economistas que defendem o liberalismo económico e o neoliberalismo cujas principais características são a liberdade para definição de preços de serviços e mercadorias. É a livre concorrência que regula o mercado com relação aos preços de bens e serviços estabelecidos pela interação entre procura e oferta.


Aos políticos exige-se e clama-se por seriedade, credibilidade e coerência ideológica nos atos e nas decisões.  Eles próprios, os políticos, os de esquerda e os de direita, quando lhes interessa, acusam-se uns aos outros de estarem a faltar e a negar os valores que apregoam. Mas será que estes valores estão sempre presentes de facto na prática política?


A incoerência faz parte da política e a sua prática é uma constante nos políticos sejam eles de que quadrante forem. O que dizem hoje negam na próxima oportunidade, buscando argumentos falaciosos sem medida da gravidade e das consequências dessa atitude. Sem pretender generalizar a incoerência, as meias verdades, os erros de juízo, a deturpação de verdades são atributos de muitos políticos independentemente do partido a que se encontrem afiliados.


Pelo meio surgem, com menos frequência, os atos de corrupção de diversos tipos, a fuga aos impostos, entre outros, cuja frequência se verifica no seio de militantes ou simpatizantes da direita ou dos que com ela conluiem. Mas, nas esquerdas, pelo menos nas mais ideologicamente assumidas é raro virem a público.


A questão que podemos colocar é a de saber se a ideologia, a militância, a simpatia partidária e a ocupação de cargos políticos serão incompatíveis e incoerentes com a posse de propriedades e de riqueza, desde que adquiridas por meios legais, desde que ninguém tenha sido prejudicado pela sua aquisição, seguindo o que a legalidade determina.


Há graus de incoerência dependentes do contexto, da intenção e do discurso e, consoante isto, a suposta incoerência ou não existe ou é irrelevante ou, pelo contrário, existindo será que é desgastante para quem a pratica?                                        


Tem andado na comunicação social e nas “bocas” das redes sociais o caso do vereador da Câmara Municipal de Lisboa e da sua propriedade presumivelmente lucrativa. Não sou, nem nunca fui, simpatizante nem eleitor do BE, e muito mesmo da sua ideologia por vezes demasiado radicalizada, mas não é por isso que me colocarei numa posição meramente contra ou dúbia, relativamente a este caso, acompanhando o rebanho dos que acusam, muitos deles infetados pelo vírus da já bem conhecida invejazinha portuguesa e de moralismos hipócritas. Serei talvez uma ovelha tresmalhada desse mesmo rebanho.                                                                                                         


O editorial de José Cabrita Saraiva do jornal i clama e critica Robles porque este se tinha insurgido “via redes sociais, contra a especulação imobiliária… usando os mesmos métodos que tanto criticava”.  Pela lógica, apenas os que não criticam, os de direita, é que podem utilizar os métodos, isto é, o da especulação imobiliária, ficando, por isso isentos de críticas. Mas Saraiva diz ainda que “há algo mais terrível”, sim, leram bem, TERRÍVEL, apenas e porque o vereador é militante da extrema-esquerda.     


José Saraiva exemplifica um caso, que parece mostrar simpatia por radicalismo de sinal contrário, ao buscar o exemplo do assassínio de John Lennon por Mark David Chapman a 8 de dezembro de 1980. Chapman foi o homem que disparou cinco tiros contra Lennon e que justificou o seu ato porque se sentiu desiludido, quando descobriu que Lennon, embora nas suas belas canções falasse sobre um mundo sem propriedade privada, andava num Rolls Royce personalizado e tinha um apartamento na avenida mais cara de Nova Iorque. Está visto que, segundo o editorialista, o assassínio parece ter sido mais do que justificado.


Depois há os outros, os que utilizam o caso para mostrar a sua desforra política sobre a violência verbal de que foram alvo. Está neste grupo Rui Tavares ex-bloco de esquerda que escreveu num artigo de opinião no jornal Público: «investimento especulativo em imobiliário (a não ser que acreditemos que as definições de "especulação” mudaram magicamente para a esquerda depois da notícia ter saído) — e achará que estou a evitar tocar verdadeiramente no assunto. É verdade. Estou a evitar tocar no assunto não por nenhuma das razões do costume, como evitar dar à direita pretextos para atacar alguém de esquerda (o que acaba por dar à direita o pretexto de atacar a esquerda, corretamente, por silenciar um assunto que envolva um dos seus) mas por uma razão mais pessoal: durante anos fui alvo da violência verbal de muita gente no BE que transformava diferendos políticos em ataques de carácter (“ele quer é tacho”, “vai entrar no PS”, “tem lugar prometido”, etc.), gente essa que nos últimos dias tem andado afadigada a inventar que sempre acharam que “especulação” e “incoerência” não inclui o tipo preciso de investimento que o dirigente do seu partido fez, ou de incoerência que ele revelaria, mas ainda inclui todos os outros tipos de investimento com que costumavam atacar (e mal passe a borrasca, querem continuar a atacar) outros adversários políticos, umas vezes bem, outras vezes mal. E, dado o contexto, dou a mim próprio o direito de não dizer tudo o que sinto sobre este tipo de piruetas verbais e políticas…».


Ainda há outros (as), como Rita Silva que vêm agora dar visibilidade à sua pureza ideológica e partidária mostrando o seu radicalismo anti despejos e desacordo com as políticas que apoiam ativamente a especulação e a “mercadorização da habitação”. Ataca agora os especuladores e recusa-se a suceder a Ricardo Robles na Câmara de Lisboa. Todavia, para além da sua intervenção pública de protesto, que mecanismos de engenharia política propõe num sistema de economia de mercado (dito capitalista) para acabar com aquilo a que se opõe?  


Também há aqueles que acreditavam que o Bloco de Esquerda era genuinamente um partido de ideais puros, pelo que se sentem mais magoados e desiludidos. O poder de atração do dinheiro insinua-se por todo o lado, até mesmo no seio dos partidos, até mesmo nos de extrema-esquerda há quem não lhe seja imune. Mas atenção, tomar o particular pelo geral é um perigo de raciocínio. Nem Ricardo Robles é o BE, nem o BE é Ricardo Robles, ele é apenas uma peça do todo.


Sejamos claros: vivemos numa sociedade de modo de produção capitalista, de economia de mercado, de livre concorrência onde se estimula a acumulação de riqueza, a competição em contexto de liberdade individual, cujo objetivo é a obtenção do lucro, por vezes fácil, e outras mais valias. Para eliminar o capitalismo estão os que defendem a estatização de tudo e mais alguma coisa. Estão contra o capital e o investimento privado que, segundo eles, exploram a mão de obra e são geradores de pobreza. É uma visão ideológica de limitada e totalmente em desacordo com a modernidade da conjuntura mundial .


A especulação imobiliária e as negociatas no ramo existem, estão bem à vista, mas quem, sem ser a esquerda, dita radical, se insurge?! A direita não. Assunção Cristas do CDS dá aqui e ali umas pinceladas com visitas populistas e demagógicas aos bairros, onde repete aquilo que todos já sabem. Contudo, o CDS definindo-se como um partido de centro-direita, é afinal um partido da direita extremada. A suas políticas no governo anterior, nada tiveram de democrata-cristão, quando tomou medidas com as quais agora se coloca contra. Cristas foi a promotora duma Lei das rendas e da liberalização do mercado imobiliário o que deu aos senhorios um poder discricionário face aos inquilinos, originando especulação imobiliária, aumentos nas rendas e despejos selváticos de famílias, englobando velhos que sobrevivem com pensões miseráveis. Tentando virar a agulha da bussola, fala agora hipocritamente da tribuna do social.


A lei da suspensão dos despejos de inquilinos com mais de 65 anos, com deficiências ou que estejam a viver na casa há mais de 15 anos até 2019 é agora contestada pelos proprietários dizendo que lhes retira os direitos e que é inconstitucional - não posso deixar de recordar os direitos cortados a outros, os não proprietários, pelo anterior governo. Recorda-se que a lei, que suspende os despejos nas condições anteriormente referidas, passou com a clara votação contra, do PSD e do CDS.  Apesar disto, a direita rejubila e lança para o ar palavras, propagando valores morais fingidos para mostrar que, na extrema-esquerda, também há especulação e corrupção.


As regras que regem a sociedade em que vivemos são extensíveis a todos os cidadãos, independentemente do seu quadrante ideológico. Mas, por outro lado, podemos considerar hipocrisia, ouvir partidos de direita defenderem direitos sociais, apoiar aberturas de lares públicos para os idosos, aumentos salariais, Serviço Nacional de Saúde, e por aí fora.   


Que culpa tem Robles de ser coproprietário de um prédio?! Será que Ricardo Robles e a irmã não poderiam melhorar o prédio, nem alugar para render, nem o podiam vender a compradores que lhe ofereciam um preço para essa compra? É a lei do mercado a funcionar que a direita defende.


A culpabilidade apontada a Ricardo Robles é apenas e só por pertencer ao Bloco de Esquerda.


O caso Robles é mais uma onda em que a direita, com a suas pranchas de surf pouco limpas, vai cavalgando como forma de eleitoralismo na corrida da competição partidária. O CDS com os seus pequeninos 7,4%, que uma sondagem lhe deu em julho, em comparação com os 9,5% do BE, quer ganhar terreno captando para o seu lado, quiçá, os eleitores deste partido indignados com o caso Ricardo Robles. É possível que não tenha essa sorte já que o PCP está alerta e Jerónimo de Sousa já disse que no seu partido isso nunca aconteceria.


Assim sendo, tem cabimento colocar algumas perguntas:


Poderá um capitalista (prefiro empresário) que paga ordenados decentes, oferece regalias sociais aos seus trabalhadores, que transaciona propriedades e cumpre todas as suas obrigações fiscais ser acusado por ser de esquerda?!!!


Poderei eu ser acusado, criticado e apontado por atraiçoar a minha ideologia de esquerda radical, se tiver filhos ou netos numa caríssima escola privada? Pode um militante de um partido da esquerda, que defenda a escola pública ter os filhos num colégio privado, ou que defenda o Serviço Nacional de Saúde, ir a uma consulta médica privada?


Deverei deixar de exercer os meus direitos de cidadão como político e militante de um partido que não concorde com o sistema em que vive por possuir propriedades ou qualquer negócio rentável?


Não poderá um comunista ser possuidor de uma propriedade privada, que adquiriu ou herdou e que lhe possa vir a trazer mais-valias? E se esse comunista fizer política?


Esta polémica à volta de Ricardo Robles fez-me recordar e recolher uma passagem do Evangelho, neste caso, segundo São Mateus, 19, 16-22, que passo a transcrever:


“Um jovem aproximou-se dele (Jesus Cristo) e disse:


«Mestre, que hei de fazer de bom, para alcançar a vida eterna?».


Jesus respondeu-lhe:


«Se queres entrar na vida eterna cumpre os mandamentos…».


Jesus Cristo enuncia os mandamentos. Disse-lhe o jovem:


«Tenho cumprido tudo isto; que me falta ainda?». Jesus respondeu:


«Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me.» Ao ouvir isto, o jovem retirou-se contristado, porque possuía muitos bens.


Nas sociedades de consumo e de competição por bens terrenos ninguém quer um qualquer tesouro no Céu em troca dos tesouros na Terra, sejam eles capitalistas ou proletários. É assim que funciona o sistema, quer queiramos, quer não.


Vejamos a circunstância da sobreposição do pragmatismo à ideologia de não deixar que o nosso sistema de crença nos impeça de fazer o que achamos certo. Um dos exemplos pode ser o de um governante fortemente católico que exija a tolerância religiosa, a fim de evitar a agitação social, ou de um ditador comunista que permite a iniciativa privada, a fim de incentivar a inovação e o progresso material. É a chamada incoerência positiva.


Se eu tivesse propriedades que transacionasse para obter ganhos e rendimentos que delas proviessem, deveria, obrigatoriamente, seguir uma ideologia ou pertencer a um partido que defendesse incondicionalmente os interesses de uma economia liberal? Ou, pelo contrário, se fizesse parte de um partido que defendesse o humanismo e os direitos sociais poderia ser acusado de incoerência?


Poderá um capitalista que explore os trabalhadores, que defenda a privatização de tudo o que seja público e lucrativo pertencer a um partido que seja ideologicamente de esquerda?  Aparentemente incoerente e improvável, mas poderia.


Quem quererá ser político num país democrático, de economia de mercado e de livre iniciativa onde partidos de direita, defensores de ideologia liberal ou neoliberal estão contra os que, sendo ideologicamente de esquerda, também são detentores de riqueza e de propriedades, obviamente regidas pelas mesmas normas e regras.


Quem quererá ser político e fazer parte de um partido num país onde defensores da economia de mercado e do capital criticam os políticos de ideologia de esquerda que sejam detentores de capital sob qualquer forma, e que o possam rentabilizar?


Quem quer ser político num país capitalista onde os de direita, exigem aos outros, os da esquerda, a rejeição do pragmatismo duma sociedade capitalista em troca do dogmatismo absoluto da ideologia de esquerda?


Há um ditado popular que diz "Em Roma, sê romano", isto é, no lugar onde estás, faz o que as pessoas fazem e imita a sua cultura. Parece que este ditado não se pode aplicar aos políticos. Ser de esquerda e ao mesmo tempo ser detentor de propriedade privada, de empresas e viver segundo as regras duma economia liberal é incompatível, incoerente e quase uma heresia para a direita.

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