Política e religião parecem ter-se apropriado gradual e reciprocamente uma da outra. As exposições de doutrinação religiosa e sermões feitos pelos clérigos católicos durante as chamadas homilias não raras vezes têm conotações político-ideológicas em combinação com a preleção que deveria ser da serventia religiosa.
Alguns políticos têm-se apropriado da religião e invocam o nome de Deus nos seus discursos políticos como indutores para convencimento político assim como os discursos e preleções de âmbito religioso e de fé cujo lugar é no recolhimento das cerimónias religiosas apropriam-se das narrativas próximas das de partidos políticos para o mesmo efeito.
Veja-se dois exemplos dos mais evidentes nos discursos de Trump nos EUA e de Bolsonaro no Brasil.
Donald Trump no discurso inaugural do 45º presidente dos EUA a 20 de janeiro de 2017 teve várias alusões à religião e a Deus estas são apenas algumas que podem confirmar aqui no site da Casa Branca: A Bíblia diz-nos: “quão bom e agradável é quando o povo de Deus vive unido em unidade”. “Seremos protegidos pelos grandes homens e mulheres de nossos militares e policiais e, mais importante, somos protegidos por Deus”. E, “sim, juntos, vamos tornar a América ótima novamente. Obrigado, Deus te abençoe, e Deus abençoe a América.”. Ainda noutro momento, na conferência da CPAC - Conservative Political Action Conference em fevereiro de 2018 além de várias referências a Deus no mesmo discurso disse “Na América, não adoramos o governo, adoramos a Deus” o que também pode ver aqui.
Bolsonaro, quando da eleição de Donald Trump, apercebeu-se logo do peso das muitas igrejas evangélicas. Jair Bolsonaro verificou que esse peso poderia ser ainda mais claro, e recorre a uma semântica que tende a anular a laicidade do Estado. Vimos na televisão quando ele ganhou as eleições e logo que foi anunciado como tendo sido o candidato eleito fez uma oração de agradecimento acompanhado com naturalidade por um pastor evangélico que muitos consideraram como causa de preocupação. E termina com "Brasil acima de tudo e Deus acima de todos".
Mais recentemente, no discurso na tomada de posse de Bolsonaro verificamos que citou “Deus” 12 vezes. Jair Bolsonaro ao ser empossado deixou claro que há uma preocupação inédita em demonstrar a sua fé em Deus.
Bolsonaro falou em “Deus” 12 vezes. Já “ideologia” e variantes foram mencionadas nove vezes, sempre no sentido negativo. O terceiro termo mais usado foi “família”. Enunciar tantas vezes palavras e assuntos de cariz religioso num estado que, segundo a Constituição, é um Estado laico é de facto, preocupante.
É um Cristianismo tóxico.
Em Portugal dá-se o inverso, também preocupante, em que clérigos com responsabilidades hierárquicas na igreja católica se reservam o direito de, abertamente, fazerem política, genérica, mas sugestiva, nas intervenções durante cerimónias que deveriam ser meramente religiosas, assim como seria também preocupante um político falar sobre sua fé num qualquer comício ou intervenção pública. Púlpito e palanque deveriam estar distantes.
Refiro-me à homília do bispo auxiliar de Braga D. Nuno Almeida que mais pareceu ser um discurso cujas palavras parecem já termos ouvido vindo de um qualquer partido político da oposição de direita, como por exemplo esta afirmação em que houve claramente uma tentativa para influenciar o sentido do voto sem mencionar nomes ou partidos: “Não nos deixemos seduzir com a propaganda política profissionalmente orientada, mas balofa e a fingir; não permitamos que alguns euros a mais na reforma ou no salário comprem as nossas convicções profundas”.
Uma breve análise do conteúdo desta afirmação sugere algumas questões: a quem se está a referir D. Nuno quando fala de “propaganda política profissionalmente orientada, mas balofa e a fingir”? Não será, com certeza, referência à direita porque esta tem feito oposição ao Governo com argumentação idêntica. D. Nuno deixa recados aos fiéis para o tempo eleitoral que se aproxima.
O Bispo auxiliar de Braga não está preocupado com o que se passa no seio clerical da igreja com a pedofilia e de outros crimes que levou o Cardeal brasileiro a denunciar a complacência do Vaticano, devido ao encobrimento pela Igreja de padre que abusou sexualmente dos filhos, a dizer que “Tenho a impressão de que as denúncias de abusos vão aumentar, porque estamos apenas no começo. Estamos a esconder isso há 70 anos, o que foi um grande erro". Podemos de facto afirmar como ele o fez, quando afirma que “corremos o de deixar a política em algumas mãos muito sujas”, assim sendo poderíamos então afirmar que também corremos o risco de a igreja estar entregue, de facto, a mãos também elas muito sujas. Digo isto com amargura por ser católico, mas desconfiar do clero que gere a igreja, apesar de o Papa Francisco ser uma personalidade ímpar que aponta para o caminho do Evangelho com enorme esforço e luta contra o conservadorismo obsoleto de alguns nomeadamente em Portugal.
O bispo auxiliar D. Nuno Almeida não se preocupa com a corrupção na igreja (que também pode ver aqui ou aqui) o que o Sumo Pontífice a admitiu, numa conversa com superiores de ordens religiosas publicada na íntegra na revista "Civiltà Católica". Não, com isso, o senhor Bispo Auxiliar não se preocupa em denunciar. Preocupa-se, isso sim, em fazer uma amálgama entre política e religião.
Numa passagem do Novo Testamento, Evangelho segundo São Mateus, 22,16 [1], os fariseus dirigem-se ao Mestre acompanhados pelos seus discípulos e dizem-lhe: “…Mestre sabemos que que és sincero e que ensinas o caminho de Deus segundo a verdade, sem te deixares influenciar por ninguém, pois não olhas à condição das pessoas. Diz-nos, portanto, o teu parecer: É lícito ou não pagar o imposto a César?… Mas Jesus, conhecendo-lhes a malícia, retorquiu: porque me tentais, hipócritas?... e mais à frente diz: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Por analogia posso então dizer que “Dai, pois, à religião o que é da religião e à política o que é da política”.
Aliás, o que vemos hoje no século XXI, embora em doses mais subtis, não é novidade dado que a separação de poderes laico e religioso, isto é, Igreja e Estado, é mais aparente do que real. E criticamos nós países como o Irão que são repúblicas teocráticas, nas quais os vários poderes são supervisionados por um corpo de clérigos.
Mais uma vez temos um Cristianismo tóxico.
Podem fazer-se as leituras que cada um entender sobre a homília de D. Nuno, mas esta é a minha, porque não tenho que ser politicamente correto e apesar de saber que, quem se mete com a Igreja leva.
[1] Bíblia Sagrada, Difusora Bíblica, Fátima, maio 2010, p.1606
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