Publicado em A Propósito de Tudo em 23 de março de 2021
Inimigos da verdade ou os mestres do embuste
Covid, vacinas, estão diariamente na
comunicação social. Outras notícias para além das relacionadas com a covid parecem
ser acessórias para os cidadãos que estão confinados, centrados nas suas preocupações
que a pandemia trouxe às suas vidas e que ainda lhes vai trazer no futuro.
Movimentos pela verdade, negacionistas,
ocupam as redes sociais em catadupa. Uma notícia que assomou nos últimos dias na
comunicação social e nas redes foi a do juiz Rui Pedro Fonseca e Castro. Este juiz
esteve também entre os organizadores do protesto negacionista do fim-de-semana do
dia 20/03 e que foi suspenso do Conselho Superior da Magistratura (CSM) por
“contestar o estado de emergência e de incentivar publicamente ao incumprimento
das regras anticovid-19”e por ter “suspendido um julgamento de um caso urgente
de violência doméstica porque o procurador e o funcionário judicial recusaram
tirar as máscaras na sala de audiência”.
O CSM considerou que a conduta
imputada ao juiz “é suficientemente indiciada, mostra-se prejudicial e
incompatível com o prestígio e a dignidade da função judicial”,
instaurando-lhe, por isso, um processo disciplinar.
Também em fevereiro de 2021 a anestesiologista
Maria Margarida de Oliveira, cofundadora do movimento médicos pela verdade que que
em entrevistas e nas redes sociais se manifestou contra o uso de máscaras e
chegou a receitar estratégias para enganar os testes à covid-19 e dicas para
manipular os resultados dos testes PCR, foram consideradas um risco para a
saúde pública e, que por isso, foi suspensa
por seis meses pela Ordem dos Médicos.
A negação do conhecimento e
desenvolvimento científico em todas as áreas que possam ter implicações na
sociedade tem como missão o embrutecimento lento, mas progressivo por meio da negação
da ciência de modo a tornar-se uma mais-valia para os que pretendem a
implementação de autoritarismos mais ou menos violentos, ou seja, políticas e
práticas fascistas. O deficiente sistema educativo ou a sua falta em algumas
áreas conduz à ignorância. É uma das estratégias dos fascistas que têm como objetivos
negar realidades e a levar as pessoas a acreditarem em teorias estapafúrdias.
As narrativas negacionistas e os movimentos
pela verdade (ou pela mentira, digo eu), é mais uma questão semântica, usam novas
formas circulação da informação para influenciar a formação de crenças em alguns
setores das populações. Apresentam-se contra o sistema e apoiam-se muitas vezes
nos valores mais conservadores da sociedade e, segundo alguns especialistas, estão
diretamente relacionadas ao crescimento da extrema-direita em vários países.
Esta tese também é defendida por Pacheco
Pereira no jornal Público de hoje quando escreve sobre a “verdade” “nome absurdo
mas revelador da pretensão destes movimentos de que são detentores de algum
conhecimento especial que está a ser escondido pelo poder político e pelos
cientistas, que estão a usar a pandemia como pretexto para terem mais poder e
para limitar as liberdades. Estão a tentar criar uma “ditadura” em nome de
interesses ocultos para o vulgo, mas bem conhecidos dos “verdadeiros”, seja a
conspiração judeo-maçónica, o grupo de Bilderberg, os demónios vivos de George
Soros e de Bill Gates, os que estão a encher os ares de sinais 5G, ou
alienígenas maléficos. Como diz um cartaz empunhado por um senhor “verdadeiro”:
“Os mafiosos da farsa covid grupo Bilderberg com a loucura da nova ordem
mundial seguidos pelos lacaios políticos mundiais da maçonaria e do Opus Dei.
Acordem.”
Estes grupelhos, que mais parecem seitas,
negam a ciência e a história que não
estejam de acordo com a sua vontade e a seu bel-prazer. Negam a eficácia das
vacinas, negam as mudanças climáticas e outras evidências científicas como negam
a gravidade da pandemia covid-19. O historiador francês Pierre Vidal chama aos
negacionistas assassinos
de memórias por aproximação aos que pretendem negar factos históricos ou ainda
reescrever a história, como alguns grupos como a extrema-direita e os nazis através de escritos destinados “a um público
especializado: herdeiros ou sobreviventes dos nazis ou nacionalistas de extrema
direita que, na década de 1930, eram aliados dos nazis. O
"revisionismo" pode aí, de acordo com o público e de acordo com os
autores, assumir a forma de uma negação radical: os nazistas não mataram nenhum
judeu…”.
Até aos dias de hoje as fake news, (notícias
falsas) têm tido um papel relevante para a difusão de teorias negacionistas
nomeadamente, através das redes sociais como o Facebook e o Twitter, com novas
formas de circulação da informação que passaram a influenciar a formação de
crenças nas pessoas. As redes sociais dão a ilusão da existência duma parcial
democratização pelo acesso, por parte da população, à informação e pela
produção de conteúdos por meio da internet e das redes sociais, como é o
exemplo deste post que acabo de colocar na rede. Há, contudo, uma falta
de regulamentação que faz com que uma pessoa possa defender qualquer ideia
estapafúrdia e disseminar fake news, que ganha considerável
repercussão por se apoiar exatamente na reprodução de valores conservadores, ou
não.
O livro “Merchants of doubt: how a
handful of scientists obscured the truth on issues from tobacco smoke to global
warming” 2010, “Mercadores da Dúvida” de Naomi Oreskes e Erik Conway, que podem
ver aqui no site do livro, revela as táticas de poucos e reputados
cientistas que, com apoio de empresários, lóbis e políticos, para semear
dúvidas e desprezar ou evitar medidas regulamentares que teriam, segundo eles
na qualidade de vida. Arquitetaram um “mercado da dúvida”, fundamentalista com
o objetivo de evitar qualquer regulação governamental sobre assuntos de
interesses políticos e económicos obscuros. O livro mostra e auxilia a entender
as campanhas difamatórias contra a ciência e os cientistas.
Os autores mostram as estratégias
promovidas por parte da indústria, dos media e de alguns cientistas para negar,
mitigar ou dissolver o consenso científico em torno de resultados danosos à
indústria devido à relação de causalidade entre o tabaco e o cancro do pulmão
ou a contribuição das indústrias de combustíveis fósseis para as mudanças
climáticas.
Os chamados mercadores da dúvida são
cientistas que utilizam as suas credenciais científicas para desvanecerem as
diferenças entre as controvérsias científicas e as disputas de opinião na comunicação
social. O primeiro capítulo daquele trabalho mostra o caso da indústria do
tabaco que foi a inventora e a mais hábil praticante da estratégia de promover
a dúvida quanto aos resultados da ciência. Segundo os autores nos anos 1950 estudos
científicos tornaram evidente a ligação entre o fumo e o cancro. Em 1953, a
American Tobacco, Benson & Hedges, Philip Morris e U.S. Tobacco contrataram
uma firma de relações públicas para defender seu produto e montaram uma
comissão para fornecer argumentos que desafiassem a crescente evidência
científica de que fumar prejudicava a saúde.
Estes cientistas mal-intencionados ganharam
espaço na comunicação social, disseminando dúvidas e inventando debates sobre temas
cientificamente consolidados. Programas de financiamento de pesquisa de
empresas com somas inimagináveis, até mesmo nos dias atuais, também foram
usados para estimular pesquisas que corroborassem dúvidas, incertezas e o
ceticismo, promovendo uma luta velada da ciência contra a ciência. Mais recentemente
temos as condutas de Trump e de Bolsonaro que têm sido amplamente divulgadas
sobre temas idênticos.
Não há provas, por enquanto, de que em
Portugal os negacionistas sejam financiados como o são noutros países onde há a
certeza de que altos financiamentos marcam o desenvolvimento dos negacionismos.
É o caso de David Koch que, segundo
The Guardian, em agosto de 2019, «foi um dos principais financiadores dos
negacionistas da mudança climática, apoiando cientistas para saquear ainda mais
a Terra que estava a destruir. A revelação num livro de Christopher Leonard
mostra que Koch desempenhou um grande papel no financiamento da negação da
mudança climática. À medida que avançamos para uma catástrofe climática que
parece cada vez mais provável de acontecer nos próximos 11 anos.»
No que se refere à covid-19, seguindo
o caminho comum a outros negacionismos, os negacionistas da pandemia passaram a
desqualificar e a agredir os cientistas e o discurso científico, sem terem
argumentos válidos e de facto sobre as dúvidas que levantam, apresentado uma
narrativa que se encaixa em valores compartilhados por determinados grupos, na sua
maioria apadrinhados por algumas áreas da extrema-direita.
Num artigo de opinião no jornal Público de Maria João Marques escreveu que “As máscaras – que comprovadamente contrariam o contágio de vírus respiratórios, como se viu com a inexistência de gripe neste inverno que passou – não funcionam e são elementos de destruição populacional em massa”. Ora esta afirmação pode ser comprovada por dados publicados pela Gripnet / Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, como mostra o gráfico da época de vigilância da síndrome gripal de 2020/21 da semana 49 de 2020 à semana 20 de 2021. Podemos verificar a coincidência do uso de máscara com a diminuição da síndrome gripal desta época, o contraria a tese dos negacionistas e os da “qualquer coisa” pela verdade.
Negacionistas e outros “qualquer coisa”
pela verdade, dizendo-se pela verdade, são os próprios inimigos da verdade. Promovidos pelas extremas-direitas, autocráticos,
fascistas e, em menor número, algumas extremas-esquerdas, tentam por todos os
meios desacreditar a democracia. Usam todos os meios que ela lhes possibilita
para a destruir desenvolvendo processos de desestabilização, instabilidade,
seja porque meios forem, que lhes permita novamente captar o poder e tomar
conta das decisões políticas para relegarem todos os direitos das Constituições
democráticas conquistadas pelos povos.
O ressurgir de novos líderes populistas
será uma primeira fase para o culminar das ditaduras. Os líderes populistas por
serem antissistema, contra a corrupção, defensores da segurança que está em
risco por todos os que são diferentes consideram-se heróis modernos e os
interpretes da nação, e por isso, promovem nas populações, por meio das suas
narrativas, necessidades de uma autoridade vertical que ponha cobro seja lá ao
que for.
Ao acreditarem nas suas próprias
mentiras e propaganda projetam em outros as suas próprias ações, isto é, a
disseminação de mentiras, sendo os governos os mestres da mentira. Os
negacionistas de criar inimigos e defini-los como corporizações vivas de
inverdade que os ajuda a assumi-los como únicos detentores da verdade.
Enfim são os mestres do embuste.
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